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29 de agosto de 2023

Arte feita de pedras

 





O mar, que só preza a pedra, 
que faz de coral suas árvores, 
luta por curar os ossos 
da doença de possuir carne. 

–– João Cabral de Melo Neto,  
"A educação pela pedra" (1966).  
 

 




Pedras comuns – o material mais simples e em maior abundância em qualquer lugar deste planeta Terra, é a matéria-prima usada por Nizar Ali Badr, artista da Síria, para expressar sua visão de mundo. São arranjos que representam mulheres e crianças, homens, árvores, famílias inteiras, seus pertences, até um beijo apaixonado: a arte de Nizar Ali Badr é feita somente de pedras. Nem tintas, nem traços, nenhum outro material. Apenas pedras. Alinhadas, organizadas sobre superfícies neutras, formam imagens que traduzem pessoas, cenas cotidianas, celebrações, denúncias. No olhar e na imaginação do observador, os mosaicos de pedras montados pelo artista traduzem a Síria, país onde Nizar Ali Badr nasceu e onde sobrevive à barbárie da Guerra Civil.

Encontrei uma seleção da arte de Nizar Ali Badr em uma página do Facebook sem nenhum texto de orientação. Apenas o nome do artista e sua terra natal. Por curiosidade, fui pesquisar sobre o artista e sobre seu país. Descobri pouco sobre Nizar, mas fiquei surpreso ao saber que a Síria é um dos territórios mais antigos da ocupação humana, habitado há milhares de anos, desde a mais remota Antiguidade, mas com a explosão da Guerra Civil, que começou em 2011, a capital Damasco e outras grandes cidades do país, Aleppo, Homs, Palmira, Latakia, Hama, surgem sempre, nas imagens dos noticiários, em escombros de explosões e bombardeiros que nunca terminam.











Arte feita de pedras por Nizar Ali Badr:
no alto e acima, o artista em ação na região
em que mora, à beira-mar, nas proximidades
do Monte Jablon, na Síria. Abaixo, amostras
da arte de Nizar: beijos feitos de pedra
e a jornada dramática dos refugiados,
tradução do sofrimento e da revolta pela
Guerra Civil que desde 2011 destrói a Síria


 











Sanções econômicas, que têm sido impostas desde 2011 por Estados Unidos, União Europeia e Liga Árabe, só aumentam o impacto da destruição e da fome sobre mais de 23 milhões de sírios (estimativa de 2023) – uma população em descréscimo acelerado na última década, por conta do número de mortos na guerra e pelas levas de migrantes que abandonam o país. A tragédia recente impressiona, mas a história tem antecedentes violentos há muito tempo. Assim como acontece na maioria dos países do Oriente Médio, a Síria não teve uma trajetória pacífica no decorrer do século 20.


História de conflitos


Estabelecida como território próspero de produção de frutas e cereais desde o imemorial Reino de Eblas, mais de 4 mil anos Antes de Cristo, a Síria ao longo de milênios conquistou muitos povos nas vizinhanças do seu território e também foi dominada, em períodos cíclicos e sucessivos, sendo palco da ascensão e queda dos impérios do Egito, da Suméria, da Mesopotâmia, de Acádios, de Ur, de Arameus, de Assírios, de Neobabilônicos, de Gregos, de Romanos, de Bizantinos, de Mongóis e de Otomanos. Cada império incorporou elementos das tradições ancestrais da Síria e também imprimiu sua marca em períodos de dominação que, em alguns casos, se estenderam por séculos.













Arte feita de pedras: acima, vista do conjunto
arquitetônico da cidade antiga de Palmira, na
Síria
, que era preservado há mais de 2 mil anos
e foi destruído nas explosões da Guerra Civil;
um homem que chora sobre os escombros,
depois de um bombardeio na região; e os corpos
levados pela água depois de um ataque aéreo
na cidade síria de Aleppo, em fotos de 2010
2016 e 2013 de Baraa Al-Halabi, fotojornalista
sírio da Agência France Presse (AFP).

Abaixo, cenas da guerra na arte de Nizar Ali Badr













A origem de diversas formas de arte também se confunde com a história da Síria – dos entalhes em pedras de relevos e esculturas às grandes construções arquitetônicas que foram assimiladas e adaptadas por culturas diversas com o passar do tempo. Os sírios também foram os primeiros a dominar a arte de produção do vidro, e seus mais antigos artefatos de vidros coloridos que sobreviveram até nossos dias têm mais de 3 mil anos. São raros, entretanto, os registros da literatura e da História Antiga da Síria, porque o país enfrentou muitos períodos de apagamentos, de violentas perseguições étnicas e religiosas, de censura que remonta à Antiguidade e vem até os dias atuais.

Ainda hoje, expoentes da literatura e das artes da Síria sobrevivem apenas no exílio, entre eles Zakariya Tamir (nascido em 1932), um dos principais escritores do mundo árabe, radicado em Londres, ou Fateh al-Moudarres (1922-1999), expoente do surrealismo e da arte moderna das Arábias, que viveu muitos anos exilado em Roma. A principal homenagem à arte da Síria, e em protesto pela Guerra Civil instalada no país, foi realizada em Paris pelo Institut des Cultures d'Islam (Instituto de Culturas do Islã), reunido obras em diversos suportes de autores sírios nas artes plásticas, fotografia, cinema e arte digital. A exposição foi aberta em 2014 e segue um roteiro itinerante em diversos países. Entre os artistas convidados estão Fadi Yazigi, Akram al Halabi, Mohammed Omran, Khaled Takreti, Muzaffar Salman e Tammam Azzam, todos com obras que fazem referência à Guerra Civil e à resistência dos sírios diante da trajetória de violência e de conflitos históricos.

















Arte feita de pedras: acima, três obras do
artista sírio Tammam Azzam que apresentam
releituras de obras célebres da história da arte
no contexto da Guerra Civil em seu país,
"A Dança" (de Henri Matisse), "Noite Estrelada"
(de Van Gogh) e "O Grito" (de Edvard Munch).

Abaixo, 
uma cena da guerra por Nizar Ali Badr






No século 20, a Síria conseguiu restabelecer sua soberania como nação, logo depois da Primeira Guerra Mundial, tornando-se o maior Estado árabe e, em 1945, ao final da Segunda Guerra, foi um dos membros fundadores da ONU, Organização das Nações Unidas, e da Liga Árabe. Ainda na década de 1940, os sírios elegeram o primeiro presidente do país, Shukri al-Quwati, e conquistaram sua independência definitiva, após um longo período do domínio francês. Nas décadas seguintes, a Síria se alinhou à União Soviética, depois ao Egito, só retornando à independência em 1970, quando houve um golpe de estado liderado pelo general Hafez al-Assad. Depois do golpe o país conquistou novamente a independência, mas permaneceu sob um governo autoritário.


Primavera árabe


Hafez al-Assad ficaria no poder durante 30 anos, até sua morte, no ano 2000, quando seu filho Bashar al-Assad assumiu o poder e o cargo de presidente da Síria. Em 2010, a permanência de Bashar al-Assad no poder foi ameaçada pela onda de protestos nas ruas das maiores cidades da Síria, no contexto da Primavera Árabe – como ficaram conhecidas as manifestações organizadas pelas redes sociais da internet (Facebook, Twitter e YouTube) que agitaram países do Oriente Médio e do Norte da África, a maioria deles, não por acaso, sendo grandes produtores de petróleo. Os protestos, que muitos analistas veem como movimentos atrelados e financiados por interesses de países do Ocidente, provocaram repressão violenta e revoluções, prisões, mortes e guerras civis no Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Argélia, Kuwait, Líbano, Jordânia e outros países. No caso da Síria, a Guerra Civil que teve início com os protestos daquele período já tem duração de mais de uma década (sobre as questões da Primavera Árabe, veja também Semióticas – Das Arábias).














Arte feita de pedras: acima, homens carregam
bebês depois de um bombardeio na cidade de
Aleppo, em fotografia de 2016 de Ameer al-Halbi
para a Agência France Presse; crianças da Síria
em área destruída na cidade de Kobane e um
acampamento de refugiados sírios na fronteira
com a Turquia, em fotografias de 2015 e 2016
de Yasin Akgul, fotojornalista da Síria para a
Agência France Presse. Abaixo, refugiados da
Guerra Civil na Síria na arte de 
Nizar Ali Badr










Na Síria, a repressão aos protestos da Primavera Árabe coincidiu com a ascensão de diversos grupos armados e sectários, alguns deles com histórico de atuação violenta nas décadas anteriores. Os conflitos internos, com apoio bélico intensivo e permanente de forças estrangeiras, já deixaram um número incontável de milhares de mortos e provocaram movimentos de migração que, segundo estimativas não oficiais, atingiram mais de 13 milhões de pessoas. O que começou como protestos pacíficos passou a enfrentar uma violência crescente que se espalhou, à medida que milhares deixavam o país na condição de refugiados e que os combatentes estrangeiros e armamento pesado entravam, fortalecendo o Estado Islâmico. Desde 2011, a paz parece um sonho cada vez mais distante para os sírios.

Este sonho distante ainda move a arte de Nizar Ali Badr que, quando começaram os confrontos violentos, passou a recolher suas pedras à beira-mar na localidade onde mora, entre as cidades de Latakia e Jebel, na região do Monte Zaphon, próxima à fronteira com a Turquia. As pedras se transformaram em passatempo e em registro de cenas que o artista acompanha no dia a dia: famílias em fuga, perseguições, violência, destruição. Também em 2011 ele conseguiu sua primeira câmera fotográfica e passou a registrar as cenas da arte efêmera que constrói diariamente com os arranjos de pedras.

Uma das poucas vezes que Nizar comercializou suas obras foi em 2016, quando a escritora e jornalista canadense Margriet Ruurs pagou pelo uso das ilustrações em seu livro infantil “Caminho de Pedras – A jornada de uma família de refugiados”, que conta a história de uma família de imigrantes, sucesso de vendas em vários países, inclusive no Brasil, onde foi lançado em 2018 pela Editora Moderna em versão ilustrada e bilíngue, em português e árabe. No livro de Margriet Ruurs, a protagonista Rama e sua mãe, pai, avô e irmão, Sami, são forçados a fugir da guerra na Síria, deixando tudo para trás, e partem em busca de refúgio na Europa, levando apenas o que podem carregar nas mochilas. A história, comovente e verdadeira, é contada pelas pedras de Nizar Ali Badr.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte feita de pedras. In: Blog Semióticas, 29 de agosto de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/08/arte-feita-de-pedras.html (acessado em .../.../…).



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27 de fevereiro de 2023

Arte moderna na Ucrânia

 




Não sei como será a Terceira Guerra Mundial.

Mas a Quarta, com toda certeza, será com paus e pedras.

–– Albert Einstein em 1945. 



A questão da arte moderna na Ucrânia é uma questão política – assim como é política qualquer questão sobre arte em qualquer circunstância. Na Ucrânia, a evolução da arte foi especialmente marcante na década de 1920, época da entrada do país na União Soviética, com artistas que influenciaram de maneira definitiva a arte moderna no Ocidente, em várias frentes, mas assim como toda a população ucraniana, muitas obras estão ameaçadas de destruição com a guerra iniciada em fevereiro de 2022 – um conflito de grandes proporções que já matou milhares de civis e militares e já é considerado como o maior confronto militar ocorrido na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Como estratégia emergencial, uma seleção dos acervos da arte moderna da Ucrânia foi reunida, com apoio de museus e de colecionadores, e transportada até o Museu Thyssen-Bornemisza, da Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia). Outras ações de resgate e preservação de obras de arte em áreas de bombardeios foram organizadas por historiadores e técnicos de museus da Ucrânia e de outros países em um fórum on-line coordenado pelo historiador Kilian Heck, da Universidade de Greifswald, da Alemanha, com apoio da Aliança Internacional para Proteção de Patrimônio em Áreas de Conflito (Aliph), sediada em Genebra, Suíça. Uma das ações resgatou 16 peças de arte sacra bizantina, com cerca de 1.500 anos, que estavam no Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram levadas para o Museu do Louvre, em Paris.

A guerra, que oficialmente teve início com a invasão da Ucrânia pelas tropas militares da Rússia, no final de fevereiro de 2022, na verdade começou bem antes, com a ascensão ao poder político de grupos de orientação fascista e armamentista na Ucrânia a partir do período entre 2013 e 2014, com a escalada de grandes e violentos protestos urbanos que na época foram chamados de Euromaidan ou Primavera Ucraniana. Segundo maior país da Europa em área territorial (atrás apenas da Rússia, seu país vizinho, com o qual compartilha extensas fronteiras ao leste e ao nordeste), a Ucrânia em 2016 completou 25 anos de independência em relação à União Soviética, mas seu destaque entre as maiores economias do planeta vem se degradando de forma acelerada desde a separação.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Carrossel,
pintura em óleo sobre tela de 1921, obra do
artista Davyd Burliuk. Acima, trabalhadores
e equipe técnica do Museu Nacional de Arte
da Ucrânia preparam obras do acervo para
serem transportadas para a Espanha. Abaixo,
um retrato pintado no final da década de 1920
por Kostiantyn Yeleva; e Uma camponesa,
pintura de 1910 de Volodymyr Burliuk.
Todas as obras reproduzidas abaixo fazem
parte do acervo reunido na exposição do
Museu Nacional Thyssen-Bornemysza, da
Espanha, nomeada como En el ojo del huracán:
vanguardia en Ucrânia, 1900-1930

 










De 11ª economia do mundo, no final do século 20, a Ucrânia começou a decair em potencial no novo século, assistindo a sucessivas pioras de seu parque industrial, que era complexo e desenvolvido quando o país fazia parte da União Soviética. Desde a separação, aconteceram perdas radicais em sua pauta de exportação, baseada em máquinas e produção de bens de alto valor agregado, além da grande produção agrícola, e houve uma progressiva ampliação da dependência de importações. Também em 2016, o PIB (Produto Interno Bruto) da Ucrânia já estava muito abaixo do nível que tinha antes do país separar-se da União Soviética, de acordo com Moniz Bandeira (no livro “A desordem mundial”, editora Civilização Brasileira), e a concentração de riqueza em setores restritos da elite ucraniana atingia níveis impressionantes.

O caos na Ucrânia tem acontecimentos que antecedem em alguns anos a guerra iniciada em fevereiro de 2022. A partir de 2013, o governo decidiu suspender um acordo com a União Europeia e retomar sua aproximação com a Rússia. Desde então, grupos fascistas identificados com a sigla Pravy Sector conseguiram incendiar o país com grandes protestos urbanos que levaram à deposição do governo, dando início a um estado de terror. A calamidade gerou conflitos de guerra civil em várias regiões do país, com políticos fascistas tomando o poder e com a liberação sem restrições para o comércio de armas de fogo. A crise teria um novo capítulo em 2019, com a surpreendente eleição de um comediante, Volodymyr Zelensky, para presidente do país.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Adão e Eva,
pintura em óleo sobre tela de 1912, obra do
artista Wladimir Baranoff-Rossiné, e um esboço
em aquarela sobre papel para um movimento
coreográfico de Masks, da Escola de Dança
Bronislava Nijinska, de Kiev, obra de 1919
de Vadym Meller. Abaixo, 1º de maio, pintura
em óleo sobre tela de 1929 de Viktor Palmov;
e Composição, pintura de 1919 de El Lissitzky





   




A guerra premeditada


Muito popular na Ucrânia por sua carreira de ator e comediante antes de entrar na política para concorrer ao cargo de presidente, Zelensky teve uma trajetória com atuações em várias frentes, incluindo espetáculos cômicos em teatro em que simulava tocar piano com o pênis, e também programas de TV, em especial a série “Servo do povo”, exibida em rede nacional de 2015 a 2018 como campeã de audiência. Na série de ficção, Zelensky fazia o papel principal de presidente da Ucrânia. Com o sucesso na TV, o grupo de Zelensky registrou um partido político com o mesmo nome da série. Nas eleições seguintes, em 2019, Zelensky despontou nas pesquisas como favorito e foi eleito presidente.

O capítulo de Zelensky na Presidência da República da Ucrânia não foi tão imprevisível como pode parecer. Com interesses muito próximos a autoridades do Ocidente e a grandes conglomerados multinacionais, o novo presidente e seu partido Servo do Povo deram início a mudanças na legislação e aceleraram um completo rompimento com o governo russo, ao mesmo tempo que buscaram maior aproximação do país com a União Europeia e com a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), promovendo exercícios militares conjuntos com os norte-americanos no Mar Negro e nas fronteiras com a Rússia, o que na prática sinalizava uma declaração de guerra.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, A leiteira,
pintura em têmpera sobre tela de 1922, obra do
artista Mykhailo Boichuk; e Os inválidos, pintura
em óleo sobre tela de 1924 de Anatol Petrytskyi.
Abaixo, Afiando as serras, pintura de 1927 de
Oleksandr Bohomazov; e o cineasta e teórico
do cinema Dziga Vertov em ação, nas filmagens
de O homem com a câmera, de 1929, com
imagens captadas nas cidades ucranianas
de Kiev, Odessa e Kharkiv. Também abaixo,
um trailer do filme em cópia restaurada de 2014

















O passo seguinte de Zelensky no poder foi dar início à guerra premeditada: como resposta aos sucessivos exercícios militares conjuntos de Ucrânia e norte-americanos nas fronteiras, e diante da deliberação de Zelensky para que o país passasse a ser um território da OTAN, as tropas russas começaram a ocupação da Ucrânia. A ocupação dava continuidade a um processo que teve início em 2014, quando os russos ocuparam a Crimeia, logo após o golpe que levou à deposição do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich, que tinha posição favorável à Rússia. A Crimeia havia sido anexada à Ucrânia em 1952. Quatro décadas depois, em 1991, quando a Ucrânia se separou da União Soviética, a Crimeia conquistou a posição de República Autônoma. Desde o final de fevereiro de 2022 a guerra na Ucrânia veio se agravando e gerou uma enorme onda migratória de ucranianos para a Rússia, enquanto Estados Unidos e OTAN seguem fornecendo um grande arsenal de armamentos pesados para que tropas da Ucrânia, sob o comando do inexperiente Zelensky, elevado ao posto de comandante, enfrentem as tropas russas.

Segundo analistas internacionais, o conflito armado está longe de um desfecho (enquanto escrevo a versão final deste artigo, a revista Time destaca que o presidente Lula, do Brasil, surge como um mediador para o fim da guerra na Ucrânia. A reportagem da Time relata que tanto o presidente Zelensky da Ucrânia, como o presidente Vladimir Putin, da Rússia, já estariam avaliando a proposta de Lula para encerrar a guerra, mas nenhuma ação indica uma vontade política para estabelecer a paz. Além da Time, analistas de outros importantes veículos da imprensa internacional também informam que a proposta de Lula pode criar caminhos para a paz na Ucrânia).










Arte moderna na Ucrânia: no alto, O fotógrafo,
pintura em têmpera sobre papel de 1927, obra de
Ivan Padalka; acima, Gopak (dança ucraniana),
pintura de 1926-30 de Ilya Repin. Abaixo, obra de
Sonia Delaunay de 1925, Vestidos simultâneos
(três mulheres, formas, cores)
; e uma colagem
com pintura em óleo sobre tela em técnica mista,
Natureza morta, obra de 1926 de Aleksandra Ekster











Genocídio e independência


O percurso histórico da Ucrânia não foi menos violento no decorrer do último século. Além das batalhas no território ucraniano durante a Primeira Guerra Mundial, no período de 1914-1917, e na época da Revolução Russa de 1917, houve diversos conflitos armados pela independência do país no período de 1917 a 1921, até a entrada definitiva da Ucrânia na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1922. Com os expurgos de Josef Stalin na União Soviética, na década de 1930, muitos líderes ucranianos foram presos ou mortos, o que gerou nova onda de protestos violentos. Com o início da Segunda Guerra Mundial, o país teve posições contraditórias, com seus movimentos nacionalistas lutando simultaneamente contra os nazistas e contra os soviéticos.

Como saldo, os conflitos em decorrência da Segunda Guerra levaram à morte de cinco a oito milhões de ucranianos, na maior parte civis. Nas décadas seguintes não houve paz: as fronteiras da Ucrânia foram diversas vezes alteradas, quase sempre deflagrando mais violência e novos conflitos armados, até o fim da União Soviética, em 1991, com um referendo popular para a população ucraniana que aprovou a independência do país. No último século, a Ucrânia ainda foi palco do acidente na usina nuclear de Chernobil, em abril de 1986, que deixou milhares de mortos e consequências permanentes de contaminação e envenenamento.







Arte moderna na Ucrânia: acima, Funeral,
pintura em óleo sobre papel de 1920, obra de
Oleksandr Bohomazov
. Abaixo, Retrato
de Mykhailo Semenko
, técnica mista de
aquarela, grafite e nanquim sobre papel,
obra de 1929 de Anatol Petrytskyi;
e Nova arte, desenho em técnica sobre papel,
obra em 1927 de Vasyl Yermilov para a capa
da edição nº 23 da revista Nove Mystetstvo
(Nova Arte), identificada como um marco inicial
do movimento construtivista









Um raro período de paz e prosperidade aconteceu na década de 1920, com a entrada da Ucrânia na União Soviética. Na cultura, a literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema prosperavam de forma surpreendente. Sobre a literatura, o Brasil tem um vínculo importante com a Ucrânia: Clarice Lispector, uma das grandes referências da literatura brasileira, nasceu na cidade ucraniana de Tchetchelnik, enquanto seus pais percorriam as aldeias para fugir da perseguição aos judeus, durante a guerra civil na Rússia de 1920-1922. Contudo, como a própria Clarice declarou, a Ucrânia foi uma terra em que nunca pisou, pois veio para o Brasil com um ano e dois meses de idade, quando sua família de imigrantes chegou ao Recife, capital de Pernambuco. Clarice não é a única referência da Ucrânia na cultura brasileira. Outro nome importante é Gregori Warchavchik, arquiteto e artista plástico que nasceu na cidade ucraniana de Odessa e chegou ao Brasil em 1923, no auge da vanguarda modernista, tornando-se um dos destaques da arquitetura moderna brasileira.

Depois de muitas idas e vindas, muitas perseguições e destruições, vários expoentes da arte moderna da Ucrânia permanecem na posição privilegiada de cânones da arte mundial, pelo que representaram de inovação e ruptura em seu tempo e pela influência que exercem até a atualidade como mestres do cubismo, do suprematismo, do futurismo, do expressionismo e da arte abstrata. Um grupo destes mestres tem em comum uma trajetória de formação acadêmica no início do século 20, na Ucrânia, e posterior destaque entre os modernos para além das fronteiras do país, especialmente em Moscou, na União Soviética, e em Paris, na França, onde vários deles viveram na célebre colônia de arte La Ruche (A Colmeia): neste grupo estão, entre outros, Sonia Delaunay, Olexandr Archipenko, Olexandr Bohomazov, Nathan Alman e Wladimir Baranoff-Rossiné.

Os artistas que deixaram a Ucrânia desde o começo do século 20, e que por longos períodos viveram ou em Moscou, ou na Alemanha, ou na colônia parisiense La Ruche, são conhecidos na história da arte como expoentes do Renascimento Ucraniano – entre eles nomes como Arkhip Kuindzhi, mestre da cor e dos efeitos de luz na pintura, que exerceu forte influência em seus contemporâneos e no surgimento da Arte Moderna, apontado como referência por nomes do primeiro time das vanguardas como Wassily Kandinsky e Marc Chagall, e também Dziga Vertov, de importância fundamental na história do cinema. Vertov, na verdade, nasceu na Polônia, mas teve sua formação acadêmica e técnica na Ucrânia, país onde realizou seus filmes mais importantes, mesmo depois de fixar residência em Moscou. Nascido Denis Arkadievitch Kaufman, ele mudou seu nome para Dziga Vertov – a palavra “dziga” em ucraniano significa moto-contínuo ou máquina de movimento perpétuo, e “vertov”, em russo (“vertet”), significa mover, rodar, girar.











Arte moderna na Ucrânia: no alto, Depois da Chuva,
pintura de 1881 de Arkhip Kuindzhi, nascido em Mariupol,
Ucrânia, na época uma província do Império da Rússia.

A
cima, a capa do catálogo da exposição realizada
no museu da Espanha. Abaixo, Composição,
pintura em óleo sobre tela 
de 1920 de Vadym Meller;
e Composição em suprematismo, colagem em técnica
mista sobre cartão, obra de 1921 de Boris Kosarev













Vanguardas ucranianas


Outro expoente do Renascimento Ucraniano é Kazimir Malevich, nascido em Kiev, mentor do movimento pioneiro da arte abstrata conhecido como suprematismo, e muitas vezes identificado erroneamente como russo, talvez por seu papel como artista central das vanguardas na União Soviética. Há outras situações semelhantes de erro de atribuição de nacionalidade de artistas ucranianos: uma delas é a trajetória de Aleksandra Ekster, uma das mulheres mais influentes das vanguardas da Europa e muitas vezes identificada como artista da Rússia, apesar de ter nascido na Polônia, ter vivido e trabalhado a vida toda na Ucrânia e ter residido apenas quatro anos em Moscou, antes de passar um longo período de exílio em Paris.

Há, também, casos de grandes artistas da Ucrânia que vêm de antes da arte moderna e que são erroneamente identificados como russos: um deles é Ilya Repin, nascido na província ucraniana de Chuguev e um dos nomes mais celebrados na Rússia na segunda metade do século 19. Depois de décadas atuando como professor na Academia Russa de Artes em São Petesburgo, Repin deixou o cargo em 1905 e foi morar na Finlândia. Quando a Finlândia se separou da Rússia, em 1917, Repin se tornaria um dos entusiastas da revolução, mas nunca mais foi autorizado a retornar a São Petesburgo ou a Moscou, nem quando houve exposições com retrospectivas de suas obras.







Arte moderna na Ucrânia: acima, Três figuras de mulheres,
pintura em óleo sobre tela de 1909 de Oleksandra Ekster.
Abaixo, Anunciação, pintura em óleo sobre tela de
1908 de Oleksandr Murashko. No final da página,
Cidade, pintura de 1917 de 
Issakhar Ber Ryback;
e uma das curadoras da mostra, a ucraniana
Katia Denysova, durante uma entrevista coletiva
na abertura da exposição em Madri

  








Um século depois de seu surgimento, uma amostragem realmente importante do Renascimento Ucraniano e dos artistas de vanguarda da Ucrânia foi finalmente reunida – contraditoriamente como consequência da guerra. Tudo começou com uma viagem que parece enredo de um filme de ficção: quando teve início o bombardeamento em Kiev, em 2022, obras de arte muito valiosas que estavam no Museu Nacional da Ucrânia e em outros acervos e coleções particulares foram transportadas, secretamente, em dois caminhões que partiram da Ucrânia em direção à Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia), aberta ao público no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza. 

Depois da viagem arriscada de mais de 3 mil quilômetros atravessando a Europa, de Kiev a Madri, passando pela Polônia, as obras-primas da arte moderna da Ucrânia, talvez o patrimônio cultural móvel mais valioso do país, estarão em exposição de gala na Espanha até o final de abril. Depois da temporada na Espanha, o acervo segue para mostras em outros grandes museus, em itinerário que começa no Museum Ludwig, na Alemanha. As 70 obras reunidas para a exposição destacam, em primeiro lugar, o absurdo da guerra, de todas as guerras, mas também traduzem a importância de artistas célebres que nasceram ou trabalharam durante muitos anos na Ucrânia. São obras e artistas que deixaram marcas definitivas tanto na cultura ucraniana como no estabelecimento das revoluções radicais de sentido, de forma e de conteúdo, que convencionamos nomear no mundo inteiro como Arte Moderna.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte moderna na Ucrânia. In: Blog Semióticas, 27 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/02/arte-moderna-na-ucrania.html (acessado em .../.../…).

































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