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9 de fevereiro de 2013

Nadar com o Pierrô





 Os homens só se compreendem uns aos outros 
na medida em que os animam as mesmas paixões. 

––  Sthendal (1783-1842).   
 

Gaspard-Félix Tournachon (1820–1910) trabalhava em uma profissão que, antes dele, ainda não tinha sido inventada: era desenhista, caricaturista e ilustrador de jornais e revistas em tempo integral. Durante o inverno de 1854, aproveitando a popularidade que seu trabalho começava a adquirir em Paris, por conta de duas publicações que ele havia criado – a “Revue Comique” e o “Petit Journal pour Rire” – Tournachon deu um passo arriscado: decidiu abrir seu primeiro estúdio especializado em produzir fotografias. A fotografia era ainda uma grande novidade, inventada havia pouco mais de uma década, ainda restrita a poucos, pelas dificuldades técnicas e pelo alto custo do equipamento. Mas Tournachon tinha um projeto ambicioso para seu estúdio parisiense: registrar e publicar um Panthéon ilustrado reunindo uma coleção de retratos fotográficos das grandes personalidades de seu tempo. O projeto foi adiante.

Em 1854 ele abriu em Paris os salões luxuosos do Panthéon Nadar, preparados para receber em um estúdio com equipamento para produzir fotografias, à luz natural das janelas altas, muitas vezes refletida em espelhos e grandes painéis móveis. Depois do estúdio fotográfico, Gaspard-Félix Tournachon ficaria mais conhecido por seu nome artístico que primeiro foi um pseudônimo – Nadar – e seu trabalho como fotógrafo passaria à história, em lugar de destaque, entre os primeiros e maiores artistas no registro de imagens com lentes e câmeras.

Félix Nadar, como passaria a assinar seus trabalhos quando se instalou no luxuoso ateliê da Rue des Capucines, que tinha decoração luxuosa, amplas vitrines e salas de espera com fotografias emolduradas, não tornou-se somente o mais célebre retratista da história da fotografia, mas também um dos primeiros a registrar flagrantes das ruas de Paris, fotografias de imagens aéreas (feitas durante voos de balão) e fotografias dos esgotos subterrâneos e das catacumbas, além de realizar muitas outras experiências que ficariam associadas à prática profissional da fotografia, como o recurso à iluminação artificial e diversas manipulações técnicas em sua sala de revelação, por ele batizada de "laboratório". O Panthéon Nadar de Fotografias, por uma sugestão de Adrien, irmão de Gaspard-Felix, teria início com uma série, realizada no estúdio fotográfico da Rue des Capucines, retratando um personagem que vinha direto da Baixa Idade Média.









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Nadar com o Pierrô: no alto da página,
Pierrot Photographe, imagem que abre
a série sobre Pierrô realizada em 1854
por Félix Nadar (acima, em autorretrato
datado de 1954 e na célebre sequência
de autorretratos de 1865 criada para
ser exibida de forma a criar ilusões de
movimento, duas décadas antes dos
célebres estudos de movimentos em
fotografias de Eadweard Muybridges.

Abaixo, Nadar em autorretrato de 1865
imagens do ensaio sobre Pierrô.
série original e completa de fotografias
de Nadar sobre Pierrô atualmente
pertence ao acervo do Musée d'Orsay
(veja o link no final deste artigo)















A ideia original de Adrien, colocada em prática pelo irmão, era apresentar o salão fotográfico de Nadar à alta sociedade e a artistas e intelectuais através de fotos estampadas em cartões de visita. Adrien tinha assistido várias vezes a um espetáculo de variedades que foi sucesso durante muitos anos no Théatre des Funambules, apresentado pelo ator e mímico Jean-Gaspar Deburau, também conhecido por seu nome artístico Baptiste, e por seu filho Charles Deburau, que resgatava esquetes e personagens da Comedia dell'Arte. Impressionado com o espetáculo, Adrien sugeriu que Nadar fizesse um retrato de Pierrô (ou Pierrot, em francês, em variação para Pedrolino, o diminuitivo de Pedro em italiano). Nadar aprovou e Charles Deburau foi contratado em 1854, dando início à série destinada a promover o salão e também inaugurar o Panthéon Nadar de retratos fotográficos. Mas a “ajuda” do irmão acabaria custando muito caro a Nadar, como seria constatado a seguir.

Um ano depois do lançamento, os cartões de visita de Nadar com as fotografias do Pierrô eram sucesso em Paris, os negócios do salão fotográfico prosperavam e o Pantheón Nadar colecionava os primeiros retratos de grandes celebridades de seu tempo – incluindo políticos, atores, escritores, pintores, músicos, artistas em geral e homens de ciências. Charles Baudelaire, Gustav Flaubert, Eugène Delacroix, Sarah Bernhardt, Stéphane Mallarmé, Jules Verne, Alexandre Dumas, Claude Monet, Delacroix, Liszt, Rossini e muitos outros, entre eles o imperador do Brasil, Dom Pedro II, foram fotografados por Nadar, que rapidamente diversificou os negócios e a partir de 1860 também passou a fornecer nos bastidores, a seus melhores clientes, os nobres e distintos cavalheiros da época, a novidade de um fetiche dos mais lucrativos: cartões com fotografias de cenas eróticas e de nudez, uma variação dos "cartões de visita fotográficos" patenteados em 1854 por outro pioneiro da fotografia, André-Adolphe-Eugène Disdéri (1809-1894).










Foi quando um problema dos mais imprevistos surpreendeu Nadar: seu irmão Adrien inscreveu, sem que ele soubesse, a série de fotografias sobre Pierrô na Exposição Universal de 1855. A série acabou recebendo o grande prêmio da exposição, mas o premiado foi Adrien e não Nadar. Foi o início de um processo tumultuado que marcou época, com muitas idas e vindas e reviravoltas na Justiça, até que Nadar conseguiu finalmente ganhar a causa em 1857. Adrien, que chegou a abrir em 1856 um estúdio concorrente com o nome do irmão, seria proibido de usar o nome Nadar. Um escândalo. Mas um escândalo que ajudou a promover o trabalho de Nadar e a popularizar cada vez mais seus negócios com a fotografia.



Commedia dell'Arte



Pierrô, Arlequim e Colombina vêm de antes do século 16, com origem em Veneza e outras cidades de países da Europa banhados pelo Mediterrâneo. As origens se perdem no tempo, mas o registro documental mais remoto desta história vem do ano de 1513, nas cidades da Itália, quando os três personagens ganharam destaque em esquetes de criação coletiva de grupos de teatro populares, apresentados pelas ruas e praças públicas. Com o passar do tempo se tornaria um estilo, conhecido como Commedia dell'Arte, também identificada por algumas fontes como Commedia all'Improviso ou Commedia a Soggetto (comédia por assunto), com seus tipos fixos e improvisos de humor escrachado, burlesco, com os comediantes interagindo livremente com a plateia, em oposição à Commedia Erudita, mais recatada e apresentada em latim, já naquela época uma língua inacessível à maioria.











Há séculos, Pierrô e sua trupe levavam gargalhadas às multidões reunidas nas praças e nos circos populares, enquanto as tramas da Commedia Erudita, com pompa e circunstância, eram encenadas nos palcos de teatro e palácios para as seletas plateias da nobreza e da aristocracia. Não é por acaso que na origem, na Baixa Idade Média, Pierrô, Colombina e Arlequim fossem serviçais envolvidos em sátiras e quiproquós de humor sobre a vida dos patrões. Colombina era invariavelmente empregada de alguma dama da Corte, enquanto Arlequim era o empregado esperto, ágil e malandro, que movimentava as ações e a intriga do espetáculo, e Pierrô encarnava o simplório, o bobo que fazia a plateia rir com suas brincadeiras atrapalhadas.

Pierrô, ingênuo e sonhador, vítima preferida das piadas do cínico e astuto Arlequim e de todos os outros personagens em cena, descobre que está perdidamente apaixonado por Colombina, a moça muito bela e simples, muito prendada, que sabe cantar e dançar, inteligente e sempre irônica, mas assim como Pierrô, Colombina também ingênua e sonhadora. O drama começa quando Pierrô decide se declarar à sua musa Colombina, mas logo vem a decepção porque ela também está apaixonada: pelo espertalhão Arlequim. Na tradição do folclore francês, Pierrô é o protagonista da canção "Au Clair de la Lune".









O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), expoente da Semiótica, das Ciências Sociais e da Teoria da Literatura, em seus estudos sobre a cultura popular e o realismo grotesco na Idade Média e no Renascimento, situa as tramas de Pierrô e demais personagens da Commedia dell'Arte na origem de uma cultura ancestral e universal de humor popular. Em "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais" (Editora Hucitec, 2008), Bakhtin destaca que provavelmente tudo teve origem na presença determinante do elemento cômico em festas e apresentações em praça pública, em oposição ao tom sério e oficial dos rituais e das cerimônias da Igreja e do Estado, na antiga Grécia, na Turquia e nos reinos da Ásia Menor na Antiguidade, passando depois à Roma de César e aos mais distantes povoados nos feudos na Idade Média.

O drama de Pierrô sobreviveu e permaneceu em variações de sucessos populares nos vilarejos da Itália e em outros países da Europa durante séculos, em pantomimas itinerantes com atores ou em teatro de marionetes, mas estava mais próximo da tradição folclórica quando foi resgatado, estilizado e levado aos palcos de Paris em montagens produzidas e encenadas por Baptiste, na verdade Jean-Gaspar Deburau (1796-1846), artista que se tornaria referência na história da mímica, da pantomima e das artes cênicas, pai do também ator Charles Deburau, que aparece como Pierrô nas fotografias do estúdio de Nadar.










 Da Europa para o carnaval tropical



O espetáculo dos Deburau, pai e filho, terminou por firmar algumas tradições na caracterização dos personagens saídos da Comedia dell'Arte: Pierrô com roupas largas e brancas, porque é feita de sacos de farinha, rosto pintado de branco e marcações em preto destacando olhos e boca. A Colombina (do italiano "colombina", "pombinha") ressurge cantando e dançando com forte maquiagem nos olhos, nas bochechas e na boca vermelha, com roupa em preto e branco, pivô da intriga amorosa que tem de um lado o Arlequim, apresentado como um espertalhão preguiçoso, bufão e piadista, com roupa feita de losangos coloridos e fundo preto, feliz e sorridente, em contraponto ao tímido e apaixonado Pierrô, que traz uma lágrima desenhada abaixo dos olhos e raramente sorri.

Dos palcos de Paris para os quatro cantos do planeta: depois do sucesso do espetáculo dos Deburau e dos cartões de visita do estúdio fotográfico de Nadar, fantasias de Pierrô, assim como de Arlequim e Colombina, voltaram à moda nas festas populares e nos bailes de carnaval em Paris e outras capitais no século 19. Em pouco tempo, cruzaram o Atlântico e chegaram no final do século aos salões da Corte Imperial no Rio de Janeiro. A partir daí, nas primeiras décadas do século 20, fantasias de Pierrô, Colombina e Arlequim começam a marcar presença nos desfiles populares pelas ruas e nos bailes carnavalescos da alta sociedade, como destacam Eneida de Moraes no clássico "História do Carnaval Carioca" (Editora Civilização Brasileira, 1958) e estudos mais recentes publicados por Hiram Araújo ("Carnaval: seis milênios de história", Editora Gryphus, 2003) e por Felipe Ferreira em "Inventando carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século 19 e outras questões carnavalescas" (Editora UFRJ, 2005).










No alto, Sarah Bernhardt caracterizada
como Pierrô em fotografia de 1883 de Nadar.
Acima e abaixo, baile de carnaval em 1905
com pierrôs e colombinas em Paris, em duas
fotografias de Joseph Byron em exposição
permanente no acervo do Musée d'Orsay.

No final da página, dois desfiles do Corso
durante o Carnaval carioca: o primeiro em
fotografia anônima, datada de 1910; o segundo
em fotografia de 1919 Augusto Malta; uma
gravação que resgata a marchinha de carnaval
Pierrot Apaixonado, composição de 1935 de
Noel Rosa e Heitor dos Prazeres; e outras
cinco obras-primas da História da Arte:

1) Gilles, pintura em óleo sobre tela de 1719

de Antoine Watteau, que foi rebatizada
como Pierrot quando foi incorporada, em
1869, ao acervo do Museu do Louvre;
2) Le baiser, com o beijo de amor impossível
de Pierrô e Colombina em pintura em óleo
sobre tela de 1870 de Auguste Toulmouche;
3) Pierrot Blanc, pintura em óleo sobre tela
de 1901 de Pierre-Auguste Renoir;
4) Pierrot, pintura em óleo sobre tela de 1918
de Pablo Picasso; e 5) Carnaval de Arlequino,
pintura de 1925 da fase dadaísta de Joan Miró








.



Depois de desembarcar em terras brasileiras no final do Oitocentos, Pierrô, Colombina e Arlequim não demoram a encontrar o mundo do samba e das marchinhas do Carnaval. Entre composições de Chiquinha Gonzaga, Heitor Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e outros que marcaram época e ganharam o imaginário popular brasileiro com personagens da Commedia dell'Arte, também está o grande sucesso do carnaval de 1936, ainda hoje celebrado pelos foliões no Reinado de Momo: “Pierrot Apaixonado”, uma marchinha de Noel Rosa, composição em parceria com Heitor dos Prazeres.

Da remota Antiguidade para os festejos populares da Baixa Idade Média e daí aos palcos parisienses do Théatre des Funambules no século 19, até encontrar registro definitivo nas lentes e câmeras do Panthéon ilustrado de Félix Nadar. O triângulo amoroso mais conhecido da Commedia dell'Arte também constrói pela figura de Pierrô um daqueles paradoxos da tradição e dos rituais que a cultura representa: um personagem tão nostálgico e tão melancólico, solitário, sendo transformado em símbolo para celebrar, há tanto tempo, no mundo inteiro, a festa e a alegria do Carnaval.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Nadar com o Pierrô. In: Blog Semióticas, 9 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/nadar-com-o-pierro.html (acessado em .../.../...). 



Para visitar a série Pierrot, de Nadar, no Musée d'Orsay,  clique aqui. 



Para comprar o livro Uma História do Samba,  clique aqui.












'Pierrô Apaixonado'


Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...

A Colombina entrou num butiquim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: Pierrô, cacete, vai
Tomar sorvete com o Arlequim...

Um grande amor tem sempre um triste fim
Com o Pierrô aconteceu assim
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute com amendoim...

Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...


(Pierrô Apaixonado, composição de 1935
de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres) 









Imagem














31 de agosto de 2011

Tem samba







Quero dizer que Noel Rosa estava tão vivo para mim que
nem parecia que eu chegava ao Rio um ano depois da morte
dele. Eu cheguei ao Rio em 1938 e Noel morreu em 1937.
Eu sentia Noel vivo no Rio. No rádio, era a mesma coisa.

–– Dorival Caymmi (1914-2008).  


Poucos meses depois da morte do mestre do samba Noel Rosa (1910-1937), nasceu Martinho José Ferreira, em fevereiro de 1938. Divulgada em primeira mão pelo rádio, a morte prematura por tuberculose, no auge do sucesso do compositor, letrista, violinista e cantor, provocou uma comoção popular. Nascido e criado no bairro carioca de Vila Isabel, Noel, o poeta da Vila, teve uma breve e vertiginosa trajetória de apenas sete anos de carreira artística e morreu aos cabalísticos 27 anos, em decorrência de complicações de tuberculose. Mas foi tempo suficiente para que suas composições revolucionassem a música e a cultura brasileira. Noel deixou cerca de 300 canções em que captou, como poucos, a poesia, o lirismo, o humor e as cenas prosaicas de sua época e de seu bairro de louvação.

Gravado por grandes nomes de sucessivas gerações da música brasileira desde a estreia de sua primeira composição, "Minha Viola", de 1929, no seu centenário de nascimento o compositor genial recebeu celebrações de homenagens e tributos – e uma das homenagens veio de outro mestre de Vila Isabel, aquele que nasceu poucos meses depois da morte de Noel. Em "Poeta da Cidade" (Biscoito Fino), Martinho José Ferreira, consagrado há mais de meio século no Brasil inteiro como Martinho da Vila, reúne um time de bambas para interpretar uma seleção de sucessos e de raridades de Noel Rosa.








Tem samba: no alto, Noel Rosa em caricatura
de Paulo Caruso. Acima, Noel em fotografia
com dedicatória para a cantora Araci Cortes,
que 
lançou canções de sucesso do compositor
em 
programas de rádio e em vários musicais
nos 
palcos do teatro de revista.

Abaixo, o registro 
profissional de
Noel como cantor, datado de 1935,
e Noel homenageado em duas caricaturas
de Guilherme Bandeira produzidas em
2010, ano de centenário do compositor.

Também abaixo, Noel em três fotografias de
1932: 1) com amigos e com 
Carmen Miranda;
 2) com Marília Batista, que o próprio Noel
considerava a intérprete mais importante
de suas canções; e 3) na redação do

jornal Diário Carioca junto com o editor
de suas canções, 
Francisco Mangione
(sentado, de terno escuro), e com

Jota Efegê, Homero Lobo e Jorge Faraj


















"Noel foi um compositor genial com capacidade rara para unir texto e melodia", aponta Martinho, em entrevista por telefone, do Rio de Janeiro. "Com Noel, ritmo e rima se misturam com uma originalidade ainda hoje impressionante. Mas gosto muito também de destacar que Noel era uma espécie de relações públicas e de embaixador da boa vizinhança entre as rodas de boêmia e de samba de vários bairros cariocas".

"É preciso destacar na sua matéria que Noel foi um pioneiro", alerta Martinho. Interrompi para lembrar também da importância de Carmen Miranda, que participou do processo de popularização do samba e dos compositores negros dos morros cariocas ainda no começo da década de 1930, quando estava em vigor a bizarra lei baixada pelo presidente Epitácio Pessoa em 1920, que proibia os negros de fazerem parte da seleção brasileira de futebol e de transitarem pelos lugares frequentados pela elite.













"Mas é isso mesmo, muito bem lembrado. Noel teve esse destaque, junto com Carmen Miranda. Pelo que sabemos, eles quebraram muitos preconceitos. Foram os primeiros a desafiar a elite carioca ao subir para as favelas e abraçar parcerias com os ilustres desconhecidos que eram os compositores negros das comunidades. Ele e Carmen, respeitosamente, levaram a classe média e o rádio a descobrirem o samba e os compositores dos morros cariocas", completa. 



Martinho canta Noel



"Poeta da Cidade", o CD, que tem por subtítulo "Martinho Canta Noel", marca a estreia de Martinho da Vila na gravadora Biscoito Fino e retoma a parceria do cantor e compositor com Rildo Hora, que foi produtor de vários clássicos de sua extensa discografia. Exatos oito anos depois da última parceria, Rildo Hora retornou à equipe de trabalho de Martinho para assinar a produção e a direção do projeto, que tem direção geral de Kati Almeida Braga, direção artística de Olívia Hime e gerência de produção de Martinho Antônio, filho de Martinho, que depois de integrar a banda do pai passou à produção e atualmente faz parte da equipe técnica da gravadora.  







Imagens de Noel Rosa: acima, em ilustração
criada por Ricardo Ferro para o documentário
Dia do Samba - Tributo a Noel Rosa, de 2009.

Abaixo, Noel com o Bando de Tangarás,
em 1930, no estúdio de gravação da Odeon.
Também abaixo, o único registro audiovisual de
Noel, feito em 1929 pelo pioneiro do cinema
Paolo Benedetti, com Noel tocando e cantando
com seu grupo Bando de Tangarás. A canção
é "Vamos falar do Norte", composição de
Almirante, que canta à frente do grupo.
Além de Noel e Almirante, também estão
em cena Braguinha (sentado, ao centro),
Henrique Brito, Alvinho e Manoel de Lino.
Também abaixo, Noel em uma caricatura
de Vini, de 2010, e a praia de
Copacabana vista do alto














"O projeto nasceu a partir de um convite de uma universidade particular do Rio, que queria preparar uma publicação com convidados de várias áreas da cultura apresentando estudos sobre Noel Rosa e sua obra musical. O disco seria um bônus, que viria encartado na publicação. Acontece que o livro atrasou e o CD acabou sendo incorporado como projeto independente da Biscoito Fino, foi finalizado e agora chega às lojas", explica Martinho, entremeando a entrevista com trechos cantarolados de antigas canções de Noel que hoje não estão entre as mais conhecidas e que na época foram grande sucesso no rádio e no carnaval. 

Diante do extenso repertório de mais de 300 canções do compositor de "Com que roupa?", celebradas e relidas há décadas como clássicos imbatíveis da música popular, Martinho e equipe partiram de um recorte original: gravar para o CD aquelas músicas feitas somente por Noel e deixar de fora algumas daquelas que são as mais populares e que foram compostas por ele e seus parceiros habituais.

"É uma proposta de certa forma radical, porque deixou de fora grandes medalhões que são as composições muito conhecidas pelo público, que Noel fez em parcerias ilustres com Vadico, João de Barro e Heitor dos Prazeres, entre muitos outros", reconhece Martinho – enquanto canta ao telefone trechos de tantas e tantas belas canções que foram excluídas do projeto, como "Conversa de Botequim", "Feitio de Oração" e "Pastorinhas", parcerias de Noel com os citados Vadico, João de Barro e Heitor dos Prazeres. 








Poeta da cidade


O critério de seleção acabou incluindo pérolas raras, que não costumam estar nas coletâneas produzidas sobre a obra do mestre, como "Minha Viola", agora gravada por Martinho e Mart'nália. Na avaliação de Martinho, pesquisador atento e autor de livros sempre elogiados, Noel Rosa é um dos poucos mestres da cultura brasileira que tem seu valor sempre reconhecido e atualizado há várias gerações.

"De todos os pioneiros da música brasileira no início do século 20, Noel é um dos poucos que estão presentes até hoje no imaginário das pessoas comuns, que sabem cantar os versos de várias de suas canções na ponta da língua", destaca Martinho. Carioca da gema, morador de Vila Isabel e pai de oito filhos, ele conta com orgulho que cinco dos filhos estão com ele sempre no palco.

Três filhos do sambista marcam presença em "Poeta da Cidade": Martinho Filho, que assina a gerência de produção pela Biscoito Fino; Mart'nália, que divide com o pai os vocais em "Minha Viola" e em "Rapaz Folgado"; e Maíra Freitas, que defende "Último Desejo" e também participa com a concepção de arranjos e ao piano.














Tem samba: acima, Noel Rosa no traço de
Elifas Andreato; na fotografia que deu origem
à ilustração; e na casa onde morou
em Vila Isabel com a esposa Lindaura.
Abaixo, Noel no dia do casamento com
Lindaura, em 1934. O casamento aconteceu
por pressão da família dela, mas Noel sempre
foi apaixonado por Ceci, a dama de um cabaré
da Lapa. Nas fotos em cores, duas cenas de
Noel, Poeta da Vila, filme de 2006 de
Ricardo van Steen, com Rafael Raposo
no papel de Noel e Camila Pitanga
interpretando Ceci, a musa inspiradora.

Também abaixo, a ilustração da

capa da biografia escrita por João Máximo
e Carlos Didier, publicada em 1990 pela 
Editora UNB e proibida de comercialização
por uma liminar concedida às duas sobrinhas
herdeiras do espólio do compositor carioca;
e Noel homenageado em um grafite em
Belo Horizonte, criação de Davi de Melo Santos,
artista que assina suas obras com DMS





















"A família vai seguindo seu caminho, alguns no palco, outros somente na plateia", brinca Martinho. Em "Poeta da Cidade", ele interpreta sozinho, com a classe, a malemolência e o fraseado característicos três canções menos conhecidas de Noel ("E Não Brinca Não", "Seja Breve", "Cidade Mulher") e a célebre "Filosofia", que abre o CD em grande estilo e é a única exceção entre as 14 selecionadas, já que foi composta por Noel em parceria com André Filho.



Noel em parceria



"Na verdade", explica Martinho, "esta beleza que é 'Filosofia' foi incluída por engano, mas acabou permanecendo até a edição final. Já tínhamos gravado 'Filosofia' quando alguém alertou que era composição de Noel em parceria. Então, decidimos bancar a exceção". Além das irmãs Mart'nália e Maíra, um time de jovens cantoras tem participação especialíssima, dividindo as interpretações com Martinho: Analimar Ventapane ("Coisas Nossas" e "Quando o Samba Acabou"), Patrícia Hora, filha de Rildo ("Três Apitos"), Ana Costa ("Século do Progresso" e "Eu Vou Pra Vila") e Aline Calixto, para quem Martinho não poupa nenhum elogio.
   






Tem samba: acima, Martinho da Vila em ensaio
na quadra da Vila Isabel, no Rio de Janeiro, em
fevereiro de 2010. Abaixo, o cantor e compositor
em família, em foto de Sandro Arieta (a partir
da esquerda, os filhos Maira Freitas, Mart'nália,
Martinho, Martinho Filho, Analimar e, à frente,
a neta Inaê Ferreira). Também abaixo, Martinho
em 1977 no documentário em curta-metragem
feito na França por Ari Candido Fernandes,
"Martinho da Vila, Paris 1977"















"Todas as participações foram especiais, dos arranjos e regência do Rildo Hora a cada um dos músicos e cantoras envolvidos. Mas a Aline foi encantadora. Foi ele, o Rildo Hora, quem me alertou sobre ela, quando ela lançou o primeiro CD. Gostei quando ela aceitou o convite e fiquei impressionado com a técnica que ela demonstrou, sem contar aquele timbre de voz que faz lembrar de imediato a saudosa Clara Nunes", explica Martinho, reconhecendo e destacando o talento de Aline Calixto. 

No CD "Poeta da Cidade", Aline Calixto está presente em duas faixas, nas duas cantando quase à capela, acelerando e desacelerando com perícia o andamento das canções, com Martinho fazendo vocais no refrão. Ela defende "Fita Amarela" e "O X do Problema", entre acordes de cavaco, pandeiro, surdo, tamborim, sax tenor, flauta e clarinete. "Todos foram espetaculares, mas a Aline marcou presença com classe e provou que tem tudo a ver com o universo dos sambas de Noel", completa Martinho.






Fita Amarela


(Noel Rosa)



Quando eu morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Se existe alma, se há outra encarnação
Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão

Não quero flores nem coroa com espinho
Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho
Estou contente, consolado por saber
Que as morenas tão formosas a terra um dia vai comer.

Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém
Eu vivi devendo a todos mas não paguei a ninguém
Meus inimigos que hoje falam mal de mim
Vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.









O 'x' do Problema


(Noel Rosa)


Nasci no Estácio
E fui educada na roda de bamba
Eu fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê

Nasci no Estácio
O samba é a corda e eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você

Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
E felicidade maior neste mundo não há
Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é o 'x' do problema

Você tem vontade
Que eu abandone o largo de Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana

Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode ver que palmeira do mangue
Não vive na areia de Copacabana







Seleção de bambas posa para a posteridade em
fotografia de 1943: a partir da esquerda, Cascata,
Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha, João da Baiana,
Ismael Silva e Alfredinho do Flautim. Ao fundo, a
primeira formação do time das pastoras de Ataulfo

Abaixo, cena de Pixinguinha e a Velha Guarda
do Samba, um documentário filmado por
Thomas Farkas durante show de
Pixinguinha e outros músicos em 1954 no
Parque do Ibirapuera, em São Paulo, em
comemoração ao 4° centenário da cidade







Samba de sambar



Enquanto "Poeta da Cidade" surge como um dos melhores tributos a honrar o Noel Centenário, o pesquisador musical e fotógrafo Humberto Franceschi define seu "Samba de Sambar do Estácio - 1928 a 1931" como um problema sério. "Foi um trabalho que consumiu 20 anos de pesquisa e que comprova a má vontade e a falta de interesse de muitos com as origens da música brasileira", destaca Franceschi, pelo telefone. Ele diz que conhece cada calçada do Rio de Janeiro. Nasceu há 80 anos, em Botafogo. No novo livro, acrescenta mais um capítulo de referência indispensável que resgata os primórdios da cultura brasileira.

Considerado uma autoridade nacional no campo da tecnologia do som e da história da música brasileira, Humberto Franceschi já havia publicado, entre outros, "Registros Sonoros por Meios Mecânicos no Brasil" (Studio HMF, 1984) e "A Casa Edson e Seu Tempo" (Sarapuí, Biscoito Fino, 2002), livro sobre a primeira gravadora a atuar no Brasil e que concentrou a maior parte dos registros musicais entre 1902 e 1950. 

Também apontado pelos especialistas como o maior colecionador de antigos suportes musicais no Brasil, Franceschi doou recentemente ao Arquivo Nacional um acervo valioso de cerca de 3 mil discos que foram gravados entre 1906-1954 (“Era de Ouro da Música Brasileira”) e produzidos à base de goma-laca, pelas gravadoras RCA, Victor, RCA-Victor, Columbia, Parlophon, Odeon, Copacabana, Sinter, Continental, Decca, Son d’Or (Uruguai), Elite Special, Star, RCE, Philips, Chantecler, Todamerica e outras.





Ismael Silva (1905-1978): um dos fundadores, em
1928, da Deixa Falar, primeira escola de samba do
carnaval carioca. Ismael, como compositor e intérprete,
tem a mesma importância de seu conterrâneo e também
contemporâneo Noel Rosa, segundo a avaliação do
historiador e especialista Humberto Franceschi
(na foto abaixo, em frente a seu acervo de 
discos de 78 RPM, com mais de 12 mil itens)






"Este 'Samba de Sambar no Estácio' é um livro que traz algo que não existia, que é a história do Estácio e os registros completos sobre cerca de 300 canções gravadas. Já o DVD multimídia, que vem encartado, resgata outros documentos importantes e a história humana do Estácio, com 100 músicas, fotografias e gravuras, mais a íntegra de 21 depoimentos citados no livro", enumera Humberto Franceschi, citando nomes e datas com precisão invejável, enquanto vai alinhavando personagens e momentos emblemáticos do samba e do Brasil no século 20.



Primeira grandeza



"Tive a sorte de conviver durante décadas com pessoas da primeira grandeza da música, Ismael Silva, Cartola, Orestes Barbosa, Nelson Cavaquinho...", recorda Franceschi, acrescentando que seu livro aborda um período essencial e pouco estudado da história da música popular que se faz no Brasil. "Samba de Sambar no Estácio" descreve o momento em que o samba se transformou nas mãos de Ismael Silva e outros baluartes nem sempre lembrados com as honrarias que merecem, como Edgar, Rubem, Brancura, Bide, Nilton Bastos, Getúlio Marinho, Heitor dos Prazeres e todos os pioneiros na composição de um samba com identidade própria, diferente dos sambas-maxixes populares naquela época. "Ismael Silva é pouco homenageado, porém talvez seja o mais importante compositor popular do Brasil, no mesmo plano de Noel Rosa", destaca Franceschi.







Cenários históricos do carnaval carioca: a partir
do alto, Danse de Guerre Batuque, pinturas em 
óleo sobre tela do alemão Johann Moritz Rugendas,
que viajou por todo o Brasil durante o período de 1822
a 1825, pintando os povos e costumes que encontrou.

Abaixo, vista do Largo do Estácio e a
Praça XI, na região central da cidade do Rio
de Janeiro, em fotos da década de 1920 (autor
desconhecido); e um encontro de bambas do
Estácio em fotografia da década de 1940: a partir da
esquerda, Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres,
Gilberto Alves, Bide e Marçal. Também abaixo, 
uma caricatura do mineiro Luquefar em
homenagem a Ismael Silva e Noel Rosa,
compositores geniais na história do samba















Humberto Franceschi, com apuro técnico e paixão pelo tema a que se dedica, apresenta no livro e na entrevista os personagens e as histórias que percorreram o Largo do Estácio na primeira metade do século passado. Alguns personagens entraram para a história, outros fizeram número à maioria anônima que durante décadas definiu as intrincadas relações do samba com o candomblé, o futebol e a prostituição. 

É a partir de depoimentos dos remanescentes do Deixa Falar, bloco que deu origem ao "samba da sambar", na definição de Ismael Silva, que Franceschi narra histórias saborosas como a da baiana Tia Ciata, avó do compositor e instrumentista Bucy Moreira, que, com um pó de ervas, teria curado a perna do então presidente Wenceslau Braz. Ou sobre o time de futebol do Estácio, o Império, que tinha em sua sede a maior gafieira da cidade.



Origens do samba


Pesquisador musical e também fotógrafo, Humberto Moraes Franceschi nasceu em 1930 em uma família que sempre esteve envolvida com a música brasileira. Tendo convivido com grandes nomes da música popular, como Ismael Silva e Cartola, Franceschi reuniu um dos maiores acervos com as primeiras gravações do samba carioca, hoje parcialmente disponível no site do Instituto Moreira Salles. 






Em "Samba de Sambar do Estácio", o pesquisador revela em minúcias o amplo painel do surgimento do samba batucado no final da década de 1920, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. E brinda os leitores com um deleite que é um DVD multimídia encartado no livro. O pesquisador reúne na edição do DVD as 100 músicas (como "Mulher de Malandro", de Heitor dos Prazeres, e "Homenagem", de Carlos Cachaça com Cartola), as 54 imagens (entre fotografias e gravuras) e os 21 depoimentos (como os de Athanazia e Bucy Moreira) citados na publicação.

O DVD também traz um mapa do Rio de Janeiro datado de 1935. O roteiro proposto no mapa, enriquecido por fotografias, sugere um passeio que segue do Largo de São Domingos ao Largo Estácio de Sá, no Bairro do Estácio, cruzando o Campo de Santana, a praça Onze e a zona do Mangue, incluindo pontos comerciais e locais que fizeram história. O trabalho foi produzido e organizado por Franceschi e por Carlos Didier, em conjunto com uma equipe de profissionais do Instituto Moreira Salles. 

Estou muito feliz com a repercussão e a importância que este trabalho tem para o futuro”, completa Franceschi, revelando outros projetos de pesquisa que já está encaminhando e que deverão ser publicados em breve. Mas ele pede para que os temas não sejam anunciados na entrevista, para evitar que sejam copiados por outros. Diz que posso revelar apenas que são projetos relacionados à memória da música popular no Brasil, com destaque para a história do samba, que segundo ele é um dos principais patrimônios da cultura brasileira. “O samba é assim mesmo. Enfrentou de tudo, preconceito, palpite infeliz, desacerto, misturas, perseguição. O samba agoniza, como diz aquele clássico. Mas não morre...”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Tem samba. In: Blog Semióticas, 31 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/tem-sambafoto-dos-bambas-cascata-donga.html (acessado em .../.../...). 















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