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14 de abril de 2024

A invasão do Gibi

 




Criada em 1905, a revista em quadrinhos “O Tico-Tico”,
pioneira no Brasil, reinava desde o primeiro número com sucesso absoluto entre crianças e adultos, com seus personagens e aventuras tipicamente brasileiros, criados por artistas nacionais, com poucas exceções de estrangeiros que apareciam como convidados em suas páginas. Sem nenhum rival à altura, “O Tico-Tico” seguia rentável e imbatível até a década de 1930, quando outros jornais e revistas decidiram investir no público infantojuvenil. Foi então que “O Tico-Tico” começou a perder público e as dificuldades financeiras foram se agravando, nos anos e décadas seguintes, com a invasão norte-americana e a conquista do território nacional pelos personagens Disney e as aventuras de heróis e super-heróis da DC Comics e da Marvel.

A batalha foi violenta: em pouco tempo, a maioria dos personagens nacionais deixaria de ter histórias inéditas e passaria a ser apenas lembranças, coisa do passado, ou apenas exceções, como aconteceria com o surgimento isolado de personagens de artistas como Ziraldo ou Maurício de Souza, a partir da década de 1960. Um capítulo importante da invasão dos quadrinhos norte-americanos aconteceria às vésperas da Segunda Guerra Mundial: em abril de 1939, a editora O Globo, um setor das Organizações Globo, grande conglomerado de jornais, revistas e rádios, já naquela época sob o comando de Roberto Marinho (1904-2003), lançou uma revista infantojuvenil semanal chamada “Gibi” que foi um sucesso imediato e a primeira grande concorrente a desbancar a liderança de “O Tico-Tico” (Veja também: Semióticas – Revistinha de vovô).










A invasão do Gibi: no alto da página, o mascote,
personagem símbolo da revista "Gibi", um estereótipo
racista e discriminatório que estava presente em todas
as edições. Acima, um anúncio de vendas da revista
por reembolso postal, expediente que garantia à
Editora O Globo várias reimpressões com milhares de
exemplares; e a apresentação do Spirit, criação de
Will Eisner, um dos personagens de grande
sucesso na trajetória da "Gibi".

Abaixo, O Fantasma na capa e nas páginas
da "Gibi": personagem criado por Lee Falk
(também criador de Mandrake, o mágico) e pelo
desenhista Ray Moore, foi um dos grandes
sucessos entre os leitores da revista.
Também abaixo, a ilustração da última página
da última edição semanal de "Gibi" em 1975












Além de ser uma porta de entrada para a invasão dos heróis e super-heróis dos quadrinhos norte-americanos, a revista lançada pelo Grupo Globo também fazia seu marketing reforçando um preconceito racial: "Gibi”, desde o seu número de estreia, trazia como símbolo, na capa, a referência racista de um personagem em desenho estereotipado retratando um menino negro e pobre. Na época, a palavra “gibi” era uma expressão francamente racista, muito usada como xingamento e como ofensa, para designar “menino negro”, “negrinho ladrão” ou “negro feio e grosseiro”. Mas o preconceito racial foi normalizado em pouco tempo: o sucesso da publicação do Grupo Globo foi tanto que a palavra “gibi” começou a perder seu caráter racista, pejorativo e discriminatório, para ganhar no senso comum um novo significado como revista de histórias em quadrinhos de heróis e super-heróis.



Desembarque no Brasil



A grande variedade de personagens norte-americanos dos quadrinhos, de vários autores e em vários gêneros, começou seu desembarque maciço no Brasil pelas páginas da revista “Gibi”, sem enfrentar nenhuma resistência nem do público nem dos criadores de quadrinhos brasileiros. Entre os invasores estavam Flash Gordon, Charlie Chan, Fantasma, Mandrake, Spirit, Capitão Marvel, Namor, Tocha Humana, Cavaleiro Negro, Agente X-9, Ferdinando, Brucutu, Popeye e muitos outros. Impressa em papel jornal, sempre alternando páginas coloridas, páginas em preto e branco e páginas em duas ou três cores, a revista ganharia vários formatos desde o lançamento. O formato principal, conhecido como série original, circulou entre 1939 e 1954, tendo 1842 edições.









A invasão do Gibi: no alto, a apresentação do herói
Flash Gordon, criação de Alex Raymond, na capa da
revista "Gibi", que também mostrava uma seleção
de outros personagens que estavam na edição.
Acima, o super-herói Capitão Marvel, criado pelo
roteirista Bill Parker e pelo desenhista C.C. Beck,
na capa da edição mensal da revista "Gibi".

Abaixo, edição da "Gibi Mensal" de janeiro de 1946
trazendo na capa a estreia de um novo herói em luta
contra os japoneses, Namor, o Príncipe Submarino,
criado pelo escritor e roteirista Bill Everett; duas capas
da "Gibi" em 1940; e uma amostra de suas páginas
com impressão no padrão de duas cores






                  

         

Em paralelo à série original foram lançadas, também com grande sucesso de vendas, “Gibi Mensal”, que circulou de 1941 a 1963, com 271 números; “Gibi Semanal”, de 1974 a 1975, com 40 edições; e lançamentos especiais, com edições não consecutivas entre 1974 e 1985, além de 12 edições de “Gibi” para colecionadores, lançadas no começo dos anos 1990. Cada tiragem das revistas tinha números altos, que variavam entre 50 mil e 100 mil exemplares, algumas vezes com reimpressões para atender às encomendas de vendas, sendo que o motivo principal das interrupções nas edições de cada formato não foram as quedas de vendas, mas sim os novos lançamentos: novas revistas que foram criadas para trazer exclusivamente apenas personagens específicos.

As revistas em quadrinhos, com a "Gibi" em primeiro plano, ganhavam cada vez mais leitores no Brasil. O sucesso de vendas era tanto que, em 1952, o Grupo Globo fundou uma nova empresa, a Rio Gráfica Editora, para dar conta da impressão das edições da "Gibi", que continuava a publicar suas coletâneas com vários personagens na mesma revista, em edições semanais e mensais, e dos novos lançamentos em quadrinhos, com novas revistas dedicadas cada uma a um só personagem. No começo dos anos 1990, a Rio Gráfica Editora seria modernizada e receberia o nome de Editora Globo. 

“Gibi” foi o maior sucesso durante anos, mas não foi um caso único. Desde o começo da década de 1930 surgiram outras revistas em quadrinhos no Brasil e também páginas inteiras de jornais dedicadas ao formato em tirinhas, acompanhando as novidades editoriais que faziam sucesso no mercado dos Estados Unidos e de outros países. O jornalista e editor russo, naturalizado brasileiro, Adolfo Aizen (1904-1991), foi um dos primeiros a apostar nas publicações exclusivas de quadrinhos de origem norte-americana. Em uma temporada nos Estados Unidos, em 1931, Aizen conheceu a variedade e o sucesso comercial das revistas em quadrinhos e também das páginas de tirinhas nos jornais, além dos suplementos temáticos semanais, dedicados ao público feminino e infantojuvenil, que vinham como cadernos encartados nas edições. De volta ao Brasil, Aizen ofereceu um projeto sobre a novidade para seu chefe nas redações de jornais e revistas, Roberto Marinho, que no primeiro momento descartou a proposta por não acreditar no potencial de vendas.








A invasão do Gibi: no alto, Adolfo Aizen, um dos
pioneiros na publicação de histórias em quadrinhos
importadas dos Estados Unidos. Acima, Aizen
na década de 1950 em um jantar comemorativo
com seu principal concorrente, Roberto Marinho.

Abaixo, capa de uma edição da revista "Gibi"
de 1940 que apresentava pela primeira vez
um personagem chamado O Pato Donald









Guerra dos Gibis


Aizen, então, emplacou seu projeto de quadrinhos junto à concorrência, no jornal carioca A Nação. O projeto de Aizen foi publicado no formato do Suplemento Juvenil, semanal, com sucesso imediato, trazendo personagens na época muito populares nos Estados Unidos e licenciados pela King Features Syndicate, incluindo histórias do Super-Homem, Tarzan, Pinduca, Betty Boop, Os Sobrinhos do Capitão e as primeiras produções dos estúdios de Walt Disney (Veja também: Semióticas– Estratégias do Zé Carioca) . Segundo informa o pesquisador Gonçalo Júnior, no livro “A Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos (1933-1964)”, lançado pela Companhia das Letras em 2004, o sucesso foi tanto que, nos dias de publicação do Suplemento Juvenil, as vendas do jornal A Nação triplicavam.

O sucesso do Suplemento Juvenil levaria Aizen a fundar sua própria editora especializada em quadrinhos, registrada como Grande Consórcio de Suplementos Nacionais. As publicações da editora de Aizen se tornando cada vez mais populares foram um alerta para a concorrência, levando outros empresários à criação de projetos similares, também na década de 1930, sempre com conteúdo importado dos Estados Unidos. Entre outros lançamentos que fizeram sucesso neste período estavam a Gazeta Juvenil, encarte tabloide do jornal A Gazeta de São Paulo, e o Mundo Infantil, da Editora Vecchi do Rio de Janeiro. Roberto Marinho também copiou o projeto de seu ex-funcionário Aizen, lançando em 1937 O Globo Juvenil, suplemento semanal que era encartado no jornal O Globo. A recepção favorável do suplemento com histórias em quadrinhos e o aumento considerável nas vendas levou Marinho à criação da revista “Gibi” em 1939.








A invasão do Gibi: no alto, Mandrake, criação de
Lee Falk, na capa do Suplemento Juvenil em
agosto de 1937. Acima, O Pato Donald na capa
da última edição do Suplemento Juvenil em 1945.
Abaixo, Superman na revista da
EBAL





Ao fim da Segunda Guerra, o mercado de jornais e revistas alcançou uma considerável expansão no Brasil, multiplicando os parques gráficos nas décadas seguintes. A concorrência se tornaria mais acirrada e levaria Adolfo Aizen a fundar, em 1945 uma nova editora especializada em revistas infantojuvenis, a Editora Brasil-América Limitada (EBAL), com publicações específicas para cada personagem e cada herói, com grande destaque para o lançamento da primeira revista exclusiva para o primeiro e mais famoso super-herói, o “Superman” (Veja também: Semióticas – Um novo Superman)
. Um novo capítulo da concorrência viria em 1950, com a criação da revista “O Pato Donald”, primeiro lançamento da Editora Abril fundada por Victor Civita.

Nascido em Nova York e descendente de judeus italianos, Victor Civita começou em sociedade com seu irmão, Cesar Civita, que também havia fundado na Argentina uma Editora Abril, na década anterior. Instalando sua editora em São Paulo, Victor Civita se naturalizou brasileiro e, a partir do licenciamento para todos os personagens dos Estúdios Disney,
criou um grande império editorial (Veja também: Semióticas – Páginas de Realidade)
com dezenas de revistas, voltadas para diversos segmentos do público, passando a disputar, em pouco tempo, a liderança de vendas no mercado nacional com as Organizações Globo de Roberto Marinho e com os Diários Associados de Assis Chateaubriand, um conglomerado que controlava a edição de jornais em vários estados do Brasil. Chateaubriand também era o proprietário da revista O Cruzeiro, fenômeno editorial que liderou o mercado brasileiro de revistas de notícias e variedades desde seu lançamento, em 1928, até encerrar as edições no começo da década de 1970. O fim da revista O Cruzeiro foi ocasionado pela falência do império dos Diários Associados, que ficou acéfalo depois da morte de Chateubriand em 1968 (Veja também: Semióticas – O Cruzeiro nos bastidores)









A invasão do Gibi: no alto, a capa da primeira
edição da revista Gibi com a apresentação de
Charlie Chan, o detetive de origem chinesa,
criação de Earl Derr Biggers. Acima, o anúncio
do lançamento da "Gibi" na primeira página do
jornal O Globo em 12 de abril de 1939.
Abaixo: uma capa de "Gibi" em tempos de
guerra, em 5 de janeiro de 1945







Ausência de regulamentação


A hegemonia norte-americana nas histórias e revistas em quadrinhos não se deu apenas por alguma qualidade superior ou pelo estilo deste ou daquele criador, como poderia supor o leitor mais ingênuo: a grande vantagem que as empresas norte-americanas tiveram foi resultado de uma total ausência de regulamentação para sua entrada no Brasil, onde puderam atuar livres de impostos e sem a contrapartida de nenhum investimento, porque seus custos de produção haviam sido cobertos pelo próprio consumo interno em seu país de origem. Diante do público brasileiro, o que estava em jogo era o controle do mercado, a exploração comercial predatória, motivo pelo qual o produto norte-americano chegava com custos muito baixos, com o objetivo violento de eliminar qualquer resistência e toda a concorrência local, com preços muito mais acessíveis do que o valor real que deveria ser pago ou investido para manter a produção nacional. No universo das histórias em quadrinhos, os artifícios do monopólio da produção econômica e da produção cultural tiveram uma total equivalência.







A invasão do Gibi: acima, a capa do número 2 da
revista "Gibi" em 1939. Abaixo, capa do número 47,
também de 1939, e uma edição especial de 1963
com seleção de histórias de Águia Negra,
Capitão César, O Sombra e Robin Hood
.

Também abaixo, trabalhador na expedição da
revista "Gibi", na sede de O Globo, em 1948,
e uma capa da edição semanal
lançada em 1974









Os quadrinhos e toda a produção cultural estrangeira, conforme destaca Julia Falivene Alves em “A invasão cultural norte-americana” (Editora Moderna, 2012), chegavam e eram amplamente consumidos porque seus preços eram bem mais acessíveis do que aquele que qualquer editor teria de pagar aos similares brasileiros que fossem criados pelos artistas nacionais. Segundo a historiadora, isso naturalmente acontecia (e acontece) porque a indústria norte-americana conta com a mais completa benevolência das autoridades locais, em vários níveis, e com a ausência de regulamentação para tais transações comerciais no Brasil – além de deter, na maioria das vezes, equipamentos e tecnologias mais avançadas, maior disponibilidade de capital e mercado consumidor mais amplo do que os pequenos e independentes produtores nacionais do Brasil e dos países periféricos.

Ao considerar a invasão norte-americana, tanto a que se deu pelas histórias em quadrinhos e por outras mídias, no decorrer do século 20, como os cenários de maior complexidade da internet e das plataformas de redes sociais na atualidade, é de fundamental importância ressaltar os aspectos políticos e ideológicos, sejam eles diretos, explícitos, ou dissimulados e subliminares. Nenhum leitor ou espectador pode ser ingênuo em relação às intenções em jogo, uma vez que os personagens norte-americanos, sem exceção, não apenas os heróis e super-heróis envolvidos em tramas de guerra e dominação imperialista, mas também os nada ingênuos personagens Disney e equivalentes, promovem, de forma permanente, processos de “lavagem cerebral” no público – em estratégias premeditadas que, com o passar do tempo, passaram a ser vistas com naturalidade. Enquanto seus produtores e o país ao qual pertencem obtêm lucros imensos e garantem sua hegemonia no mercado internacional de produtos culturais, os selvagens pacíficos do Terceiro Mundo, em troca de alguma diversão, continuam “pagando o pato”.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A invasão do Gibi. In: Blog Semióticas, 14 de abril de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/04/a-invasao-do-gibi.html (acessado em .../.../…).

 

 
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24 de agosto de 2022

Estratégias do Zé Carioca

 





O que faço é um trabalho de amor. Eu não entrei

neste negócio apenas para ganhar dinheiro.

Walt Disney (1901-1966).


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Criado por Walt Disney durante uma viagem ao Rio de Janeiro e, oficialmente, lançado em 24 de agosto de 1942, Zé Carioca completa hoje seu aniversário. Trata-se de um caso exemplar das estratégias políticas que usam personagens de histórias infantis e, na perspectiva do Brasil, um capítulo importante da invasão cultural norte-americana, como já foi apontado por diversos estudos. São 80 anos de existência do único personagem brasileiro na The Walt Disney Company – uma data comemorada com homenagens e grandes negócios anunciados para os próximos meses. Entre as homenagens, novas histórias em quadrinhos, com o relançamento da revista do personagem e de uma edição especial do “Almanaque do Zé Carioca”, além do lançamento de três livroinéditos: “O essencial do Zé Carioca: celebrando os 80 anos de sua estreia”, pela editora Culturama, que desde 2020 assumiu a publicação das revistas Disney no Brasil; “Zé Carioca conta a história do Brasil”, um projeto do escritor Eduardo Bueno; e "Muito prazer, Zé Carioca", uma biografia do personagem escrita por Jorge Carvalho de Mello. 

Entre os negócios anunciados também estão relançamentos do personagem no canal Disney Plus, uma programação de eventos criada em parceria da Disney com o canal ESPN e conteúdos especiais nos sites e redes sociais da empresa, além de coleções temáticas do Zé Carioca licenciadas pela primeira vez para roupas, brinquedos, instrumentos musicais e acessórios que serão vendidos em parcerias com diversas marcas no Brasil e em outros países. Com as estratégias comerciais, a meta é reposicionar o personagem em destaque entre os produtos da Disney, depois do quase esquecimento nas últimas décadas, quando até suas revistas tiveram publicação cancelada no mercado brasileiro. Nos últimos anos, o Zé Carioca apareceu apenas ocasionalmente em pequenas histórias no “Almanaque Disney”.







Estratégias do Zé Carioca: no alto, a nova versão do
personagem, que chega ao 80 anos. Acima, Zé Carioca
na nova imagem para o reposicionamento comercial.

Abaixo, Walt Disney e sua equipe desembarcando
no Rio de Janeiro, em 1941, no programa de governo
nomeado como Política da Boa Vizinhança; e o cartaz
original da estreia de Zé Carioca no cinema, ao lado
do Pato Donald, no filme de 1942 "Alô Amigos"




             

A história do Zé Carioca teve início sob encomenda para um projeto político: assim que foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial, Walt Disney foi destacado pelo Departamento de Estado para a missão de criar peças de cinema e de histórias em quadrinhos para a aproximação dos Estados Unidos com os países da América Latina, dentro das estratégias da chamada Política da Boa Vizinhança, criada pelo governo Franklin Roosevelt na década de 1930, e que ganhou força para conquistar a simpatia dos governos e dos povos latino-americanos em tempos de guerra contra os nazistas. No vértice brasileiro da aproximação estão acordos comerciais com o governo de Getúlio Vargas e a importação pelos Estados Unidos de Carmen Miranda, na época a maior estrela da música, do rádio, do cinema e do teatro de revista no Brasil. Carmen embarcou para os EUA em 1939, alcançando em pouco tempo um sucesso estrondoso na Broadway e em Hollywood.


Malandro, alegre, hospitaleiro


Na sequência dos acordos comerciais e de geopolítica dos EUA com o governo Vargas, viriam dois grandes projetos de cultura e política a cargo de Orson Welles e de Walt Disney. O filme de Orson Welles no Brasil, “It’s All True”, jamais foi concluído pelo cineasta, que retornou aos EUA no final de 1942 depois de filmagens que foram uma sucessão de escândalos e de acidentes. Walt Disney, por sua vez, chegou com sua equipe ao Brasil em 1941 e, assim como Welles, ficou encantado com a cultura brasileira. Durante a viagem de Disney veio a inspiração para criar o Zé Carioca, um papagaio malandro, alegre e hospitaleiro, que vivia no morro da favela, enrolava seu próprio cigarro, gostava de feijoada, de cachaça e de futebol. Sua estreia aconteceu em 1942, no filme “Alô Amigos” ("Saludos Amigos" / "Hello Friends"). Com o sucesso comercial do filme, nos EUA, no Brasil e em outros países, Zé Carioca retornaria em uma série de histórias em quadrinhos e em outros dois filmes: “Você já foi à Bahia?” ("The Three Caballeros", 1944) e “Tempo de Melodia” ("Melody Times", 1948).








Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
bebe cachaça com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, o presidente Getúlio Vargas
(à esquerda) com Walt Disney (à direita) no
Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Abaixo,
um encontro do maestro Heitor Vila Lobos com
Walt Disney, também no Rio de Janeiro






Em “Alô Amigos”, sexto longa-metragem de animação de Walt Disney (os anteriores foram "Branca de Neve e os Sete Anões", "Pinóquio", "Fantasia", "Dumbo" e "Bambi"), há quatro histórias, ou quatro segmentos, cada um representando um país, e todos estão interligados. No primeiro, "Lago Titicaca", o turista norte-americano Pato Donald visita o Peru; no segundo, "Pedro", um pequeno avião parte do Chile para buscar correspondência aérea na Argentina; no terceiro, "O Gaúcho", Pateta é o cowboy dos EUA que vai aos pampas argentinos; no quarto, "Aquarela do Brasil", Zé Carioca recebe o viajante dos EUA, o Pato Donald, e o acompanha em um passeio pelo Rio de Janeiro e por diferentes paisagens do Brasil, seguindo também pela América Latina. Donald, que havia estreado no cinema em 1934, em um episódio curto do filme “Sinfonias Tolas” (“Silly Simphony”), aparece em forma redesenhada e definitiva, com o uniforme azul e branco de marinheiro – na verdade um “mariner”, integrante do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, evidentemente destacado para um “esforço de guerra”.

No mesmo ano de 1942, Donald apareceria em outro filme de propaganda de guerra, o desenho anti-nazista “A Face do Fuehrer” (“Der Fuehrer’s Face”), que venceu em 1943 o Oscar de melhor curta-metragem de animação. Donald também é protagonista em “O Espírito de 1943” (“The Spirit of ‘43”), filme curto em que ele seráconvencido a doar parte de seu salário de trabalhador para as campanhas da guerra, e em outros dois filmes de animação em longa-metragem com Zé Carioca, os já citados “Você já foi à Bahia?” e “Tempo de Melodia”. “Alô Amigos” seria um grande sucesso comercial de Disney, apresentando na trilha sonora duas canções brasileiras que se tornariam populares no mundo inteiro: “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, e “Tico-Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu, que seriam gravadas em seguida por Carmen Miranda e por muitos artistas de diversos gêneros e nacionalidades, de Frank Sinatra e Ray Conniff a Paco de Lucia e Xavier Cugat, entre outros.






             






Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
dança o samba com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, Walt Disney (de bigode) e sua
equipe visitam a quadra da escola de samba Portela
na companhia de Paulo da Portela.

Abaixo, Carmen Miranda durante as filmagens
de "Uma Noite no Rio", em 1941, com
o músico Zezinho (de camisa listrada), que foi
um dos integrantes do grupo Bando da Lua e
o dublador de Zé Carioca em "Alô Amigos"
 









A gênese do papagaio carioca


O sucesso no cinema levou Zé Carioca para as páginas das histórias em quadrinhos. No final de 1942, ele surgiria em tirinhas publicadas por vários jornais nos EUA e, nos anos seguintes, chegaria ao Brasil e a outros países no formato de revista em quadrinhos que exploravam o exotismo das paisagens do Rio de Janeiro. Na biografia de Walt Disney publicada em 1994, “An American Original” (Disney Editions), o autor Bob Thomas descreve as circunstâncias que levaram Disney a criar o personagem em uma suíte do Hotel Copacabana Palace, que esteve temporariamente transformada em estúdio, enumerando referências que estão na gênese do filme "Alô Amigos" e do personagem do papagaio malandro. Tudo indica que na origem do Zé Carioca estão ideias originais de José Carlos de Brito e Cunha, mais conhecido como J. Carlos, cartunista que fazia sucesso na revista “O Tico-Tico”.

Entre outros personagens que o cartunista desenhava para “O Tico-Tico”, havia um papagaio sem nome que fumava charuto e aparecia ocasionalmente em charges e histórias de outros personagens. Ao tomar conhecimento dos projetos para o filme e para um novo personagem que seria criado, J. Carlos presenteou Disney, durante um jantar, com um desenho do tal papagaio que ele havia criado. No desenho, o papagaio abraçava o Pato Donald. Segundo o biógrafo Bob Thomas, o desenho de J. Carlos, associado a outras referências de pessoas do meio artístico que Disney conheceu no Brasil, levariam à concretização do personagem Zé Carioca. Entre as referências também estava o músico e humorista Zezinho (José do Patrocínio Oliveira), que tocava cavaquinho no grupo Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda. Não por acaso, Zezinho é o dono da voz que dubla o Zé Carioca em “Alô Amigos”.






Estratégias do Zé Carioca: acima, uma
reunião no hotel Copacabana Palace, no
Rio de Janeiro, em 1941, com Jorge Guinle,
dono do hotel, Carmen Miranda e Walt Disney.
Abaixo, Walt Disney filmando nas areias da
praia de Copacabana e passeando de barco
na baia da Guanabara com a equipe de trabalho
















Outras influências para a criação do personagem Zé Carioca vêm do charuto que o compositor Heitor Vila Lobos sempre fumava e dos olhos azuis do compositor Herivelto Martins – duas das personalidades muito populares da época, no meio artístico do Rio de Janeiro, que tiveram vários encontros com Walt Disney, tanto em reuniões de trabalho como em jantares e passeios pelos mais conhecidos cenários cariocas. O biógrafo também cita os convites que foram feitos pessoalmente por Disney para o compositor Ary Barroso, para o maestro Vila Lobos e para o cartunista J. Carlos, para que eles fossem trabalhar sob contrato com a equipe Disney em Hollywood, mas todos eles recusaram as propostas.

Nos anos seguintes, Ary Barroso venderia os direitos de algumas canções para filmes da Disney e para outros estúdios de Hollywood. Vila Lobos, no final da década de 1950, seria contratado para criar a trilha sonora de "Green Mansions" (no Brasil, "A flor que não morreu"), superprodução da Metro Goldwyn Mayer com direção de Mel Ferrer e com Audrey Hepburn e Anthony Perkins no elenco. O maestro brasileiro compôs uma peça sinfônica belíssima, hoje conhecida como "Floresta do Amazonas", mas ficou extremamente insatisfeito com o uso que fizeram de suas partituras na trilha sonora da versão final do filme e nunca mais quis repetir a experiência.


Do cinema para os quadrinhos


Na temporada de Disney no Brasil há também a presença de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, que acompanhou uma visita de Disney e sua equipe à quadra da escola de samba na Guanabara e deixou Disney impressionado por sua elegância, sua alegria e sua gentileza hospitaleira – as mesmas características que seriam levadas para o filme “Alô Amigos” e que ficaram visíveis na recepção que Zé Carioca faz para o Pato Donald no Rio de Janeiro. Bob Thomas também cita outro brasileiro como referência para a criação do papagaio: o advogado Manuel Vicente Alves, mais conhecido como Dr. Jacarandá, um tipo folclórico na época, na zona sul carioca, que também foi apresentado a Disney na visita da equipe à quadra da Portela. Tal como aconteceria com Zé Carioca, o Dr. Jacarandá sempre usava, sob o sol escaldante do Rio de Janeiro, chapéu panamá de aba reta, paletó de alfaiataria, camisa social com gravata borboleta colorida e um inseparável guarda-chuva.









Estratégias do Zé Carioca: no alto, a capa
da primeira edição do livro "An American Original",
biografia de Walt Disney escrita por Bob Thomas.
Acima, o Zé Carioca em sua imagem clássica.

Abaixo, os encontros de Walt Disney com
o compositor Ary Barroso e com Alceu Penna,
ilustrador da revista O Cruzeiro, no hotel
Copacabana Palace em 1941










Nos estúdios Disney, Zé Carioca ganhou vida também sem a presença do Pato Donald. As tirinhas e histórias em quadrinhos do personagem, criadas a partir de 1942, tiveram roteiro de Hubie Karp e desenhos de Bob Grant e Paul Murry – os três integrantes da equipe Disney que também trabalharam no filme “Alô Amigos”. O personagem, batizado como Joe Carioca, estreou nas páginas de jornais e revistas dos EUA em outubro de 1942 e quatro meses depois chegava ao Brasil publicado em “O Globo Juvenil”, suplemento mensal que circulou entre 1937 e 1952, em formato tabloide de 16 páginas impressas em papel jornal, tendo como editor Nelson Rodrigues, que ganharia notoriedade como cronista e dramaturgo. As histórias do Zé Carioca também tiveram uma edição especial publicada pela Editora Melhoramentos em 1945: o personagem, fumando seu charuto, aparece na capa tendo ao fundo a baía da Guanabara.

Nas páginas de “O Globo Juvenil”, Zé Carioca faria sucesso com suas histórias e tirinhas intercaladas com quadrinhos que traziam heróis estrangeiros como Superman, Mandrake, O Fantasma, Flash Gordon, Brucutu e Ferdinando, entre outros. A primeira vez que Zé Carioca apareceu na capa de uma revista foi na primeira edição de “O Pato Donald”, que inaugurou a parceria comercial entre Disney e a Editora Abril, em julho de 1950, participando apenas de uma história. Depois desta primeira fase do personagem, Zé Carioca retornaria somente na década de 1960 às revistas dos personagens Disney. Em 1961, ele ganharia sua própria revista de publicação semanal com histórias inéditas, criadas no Brasil, e com adaptações de histórias de outros personagens da Disney, tendo na capa da primeira edição o título "O Pato Donald apresenta Zé Carioca". Em 2018, depois de 68 anos, a Editora Abril encerrou seu contrato de publicação das revistas Disney, que desde 2020 passaram a ser publicadas pela Editora Culturama, mas várias revistas permanecem canceladas.







Estratégias do Zé Carioca: acima, o papagaio
malandro criado por J. Carlos para as charges
da revista "O Tico-Tico", uma das fontes de
inspiração para Walt Disney criar o Zé Carioca.

Abaixo, uma sequência dos primeiros esboços
da equipe Disney para o personagem; e a capa
da primeira edição da revista "O Pato Donald"
no Brasil, em junho de 1950, que teve a presença
de Zé Carioca como convidado especial








As intenções políticas


O encontro de Zé Carioca com o Pato Donald em “Alô Amigos” também é um campo fértil para estudos políticos e de historiografia. No livro “The Hispanic Image on the Silver Screen” (“A imagem hispânica na tela de prata”, Editora Greenwood, 1992), o historiador Alfred Charles Richard Jr. apresenta uma constatação que se tornou célebre: segundo ele, o filme “Alô Amigos” conseguiu consolidar, para grande parte do público de países da América Latina, em poucos meses, mais simpatia pelos Estados Unidos do que as ofensivas do Departamento de Estado norte-americano conseguiram antes em mais de 50 anos de ocupações militares e de ações diplomáticas.

Em seu estudo, Richard Jr. avalia os efeitos que o cinema de Hollywood teve sobre o público na formação e na propagação de estereótipos, assim como as relações muito próximas entre o cinema norte-americano e a política de outros países da América, com filmes que, com muita frequência, justificavam e glorificavam a intervenção dos Estados Unidos nos assuntos das nações latino-americanas. No caso brasileiro, tais intervenções são especialmente visíveis em dois momentos de regimes ditatoriais: primeiro, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, que coincide com a vigência da Política da Boa Vizinhança do governo Roosevelt; e posteriormente na ditadura militar que tomou o poder no período de 1964 até os anos 1980.










Estratégias do Zé Carioca: acima, Walt Disney
passeando na praia de Copacabana, em 1941;
e desenhando croquis e cenários para o filme
"Alô Amigos" com Mary Blair na varanda do hotel,
no Rio de Janeiro. Abaixo, Walt Disney passeando,
anônimo no meio da multidão na Avenida Rio Branco,
centro do Rio de Janeiro, fotografado para reportagem
da revista "Life" por Hart Preston; e o encontro
entre o presidente do EUA, Franklin Roosevelt,
e o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, em
Natal, Rio Grande do Norte, em janeiro de 1943.

Também abaixo, a capa da edição brasileira
do livro de Ariel Dorfman e Armand Mattelart,
"Para ler o Pato Donald"; e uma seleção de
capas históricas do Zé Carioca no Brasil:

1) Zé Carioca, edição especial da Melhoramentos em
1945; 2) Zé Carioca na capa de "O Globo Juvenil" em
janeiro de 1944; e 3) Zé Carioca na primeira edição de
sua revista, em 1961, que traz na capa o título
"O Pato Donald apresenta Zé Carioca"







Tais associações entre ações políticas, cinema, literatura e estereótipos instrumentalizados na cultura brasileira são também abordadas em diversos estudos de crítica literária, de comunicação social, de sociologia e de antropologia, entre eles “Dialética da Malandragem” (Revista de Estudos Brasileiros da USP, 1970), de Antonio Candido; “Carnavais, Malandros e Heróis” (Editora Rocco, 1979), de Roberto da Matta; e "A Invasão Cultural Norte-Americana" (Editora Moderna, 1988), de Júlia Falivene Alves. Uma abordagem mais específica sobre o tema, feita a partir da análise de personagens de Walt Disney e de sua influência na América Latina, foi publicada em 1971, no Chile, por Ariel Dorfman e Armand Mattelart, e se tornaria um clássico incontornável: “Para ler o Pato Donald – Comunicação de massa e colonialismo”, que teve primeira edição no Brasil em 1977, pela Editora Paz e Terra, em tradução do historiador de quadrinhos Álvaro de Moya.

Dorfman, nascido na Argentina, e Mattelart, nascido na Bélgica, ambos militantes de esquerda na luta pelos Direitos Humanos, propõem, em suas próprias palavras, um “manual de descolonização” a partir de uma leitura dos quadrinhos por um viés marxista. Uma definição reveladora sobre o estudo é apresentada de forma resumida, pelos próprios autores, na abertura do terceiro capítulo do livro: “Os povos subdesenvolvidos são para Disney, então, como as crianças; devem ser tratados como tais, e se não aceitam essa definição de seu ser, é preciso descer suas calças e lhes dar uma boa surra. Para que aprendam!” Observadas com um intervalo histórico de mais de 50 anos, pode-se perceber com muita clareza o quanto as análises radicais e ideológicas de Dorfman e Mattelart removeram as máscaras de inocência e de ingenuidade que, por muito tempo, conseguiram disfarçar o aparato violento de dominação cultural e os mecanismos agressivos de propaganda política, manipulados, desde sempre, para favorecer e fortalecer os interesses do império norte-americano.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Estratégias do Zé Carioca. In: Blog Semióticas, 24 de agosto de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/08/estrategias-do-ze-carioca.html (acessado em .../.../…).

















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