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12 de novembro de 2015

Atualidades de Barthes






Saber que não escrevemos para o outro, saber que essas coisas
que eu vou escrever jamais me farão amado de quem amo, saber
que a escrita não compensa nada, que ela está precisamente ali
onde você não está –– é o começo da escrita.

 ––  Roland Barthes, "Fragmentos   
de um Discurso Amoroso" (1977).     
 
Mais de três décadas depois de sua morte, as homenagens ao centenário de nascimento de Roland Barthes, completado neste dia 12 de novembro de 2015, confirmam sua importância valiosa e inquestionável como um dos principais pensadores de nossa época e um dos nomes mais influentes de sua geração. Barthes – o professor com “p” maiúsculo que postulou uma “Ciência dos Signos” – sempre erudito, sedutor, instigante e inquietante, surge nas mais de 6 mil páginas de sua “Obra Completa” como um autor de difícil classificação e um “sujeito impuro”, na definição dele mesmo. Na falta de um rótulo melhor, ele ainda é, quase sempre, chamado de “crítico” – mas talvez mereça ser nomeado, de forma mais fulgurante, como um grande “escritor”: um escritor disfarçado de pensador.

O escritor Roland Barthes demonstrou que não busca a diferença entre verdade e aparência. Muito pelo contrário. Para ele, tudo no mundo é aparência, tudo é linguagem e superfície: tudo é texto, inclusive a variedade dos aspectos não verbais, o pictórico, o fotográfico, os gestos, os afetos, passíveis de interpretações plurais e complementares – como ele próprio argumentou, desde a década de 1950, em suas abordagens de intérprete original dos códigos da cultura de massa, das instituições literárias, das ideologias e dos diversos sistemas de signos codificados na vida cotidiana.

Se é verdade que, por longo tempo, quis inscrever meu trabalho no campo da ciência literária, lexicológica ou sociológica” – disse Barthes em sua magistral aula inaugural em 1977, no Collège de France, depois transformada em livro – "devo reconhecer que produzi tão somente ensaios, gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise". A teoria, sutil e original, que emerge dos ensaios de Barthes, com a permanência de sua presença e sua influência na atualidade, é destacada nas entrevistas que fiz, a convite da revista “Em Tese”, da UFMG, com três das professoras da universidade que têm importância fundamental como precursoras dos estudos sobre ele: Angela Senra, Eneida Maria de Souza e Vera Casa Nova (veja, no final deste artigo, os links para a íntegra das entrevistas e para o programa de TV da Rede Minas sobre o centenário de Barthes).




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Atualidades de Roland Barthes: no alto,
Barthes aos 35 anos, em 1950, quando
trabalhou como professor em Alexandria,
no Egito. Acima, Barthes em casa, em seu
escritório de trabalho, em Paris, fotografado em
dois momentos: em 1975, por Sophie Bassouls;
em 1978, por Jerry Bauer. Também acima,
um retrato do escritor em lápis sobre papel
feito por Alan Brooks em 2010 a partir
de uma fotografia de Barthes no escritório
feita por Julian Guindeau para a revista
L'Express na década de 1970 (abaixo).

Também abaixo, Barthes recebe a visita de
Umberto Eco em Paris: o mestre encontra
um dos seus discípulos, fotografados
por Macchi Polymnia em 1970









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Subversivo, sóbrio, elegante



A primeira pergunta que apresento, nas três entrevistas, é sobre o papel e o lugar de Roland Barthes na atualidade. Qual é a melhor definição para Barthes? Escritor, professor, pensador, sociológico, ensaísta, crítico da literatura, da linguagem, da moda, da mídia, da arte, teórico da Semiótica, da Semiologia, da Cultura? Existencialista, marxista, estruturalista, moderno, pós-moderno?

É por demais notória a importância de Roland Barthes para a crítica literária e cultural”, explica Eneida Maria de Souza. “Sua atuação em vários campos do saber, indo da crítica literária às artes plásticas, não cessa de ser reatualizada pelos novos estudiosos nas academias e em pesquisas desvinculadas dos saberes institucionalizados. Com a publicação de textos inéditos, como diários e aulas ministradas no Collège de France, temos uma leitura renovada de seu legado.”


















Atualidades de Roland Barthes: imagens 
do escritor em 1977, durante entrevistas às
TVs francesas, falando sobre o lançamento
de uma de suas obras-primas, o livro 
Fragmentos de um Discurso Amoroso.
 
Abaixo, Barthes em Paris, em fotografia
de 1970 de Macchi Polymnia; e em três
momentos no ano de 1979: fotografado
por Marion Kalter e, a seguir, por
Ulf Andersen e por David Herali





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Para Vera Casa Nova, não há definições que possam enquadrar a presença e a importância de Roland Barthes. “Ele é plural por excelência. Sua função foi e será o questionamento, a desconstrução dos saberes e seus textos. Esse é o papel de Roland Barthes, ontem, hoje e sempre, sem modismos teóricos. Com certeza ele não gostaria de ser de alguma forma rotulado, pois com todas essa funções que você enumerou, ele só poderia ser esse sujeito plural a que me referi anteriormente. Cito ele mesmo – Eu sou eu mesmo meu próprio símbolo. Eu sou a história que me acontece: uma roda livre na linguagem... Je n’ai rien à quoi me comparer... inumeráveis são as narrativas do mundo...”

"Barthes é o intelectual subversivo, o professor formador de outros intelectuais, situando os imaginários da relação didática", completa Angela Senra. "Fui aluna de Barthes na Escola Prática dos Altos Estudos, em Paris, em 1971 e 1972. Descobrimos, com Barthes, um processo permanente de invenção. Assim como faz em seus textos, o Barthes em sala de aula reinventava citações, chegava ao inter-texto. Aos deslocamentos. Barthes é uma lição permanente: ele é o intelectual e professor 'desconfiado'. Aquele que questiona os mecanismos do poder, subverte as diferentes linguagens. E era um homem sóbrio, elegante. Cortês. Polidez nas palavras, nos gestos. Voz baixa. Tranquilidade na fala. Continuei e continuo lendo Barthes".

















O pensamento libertário



Eneida Maria de Souza também recorda a elegância e o estilo incomparável de Roland Barthes em sala de aula. “Assisti às aulas de Barthes quando fui para Paris para o Doutorado, em 1978. A partir daí, o contato com sua obra foi mais intenso, com as publicações de 'A Câmara Clara', de artigos escritos no 'Nouvel Observateur' e na sua atenção mais centrada nas disciplinas afins da literatura, como o cinema e a fotografia. Assisti a várias aulas no Collège de France ministradas por ele, as quais me fizeram conviver com sua maneira magistral de proferir conferências. No segundo tempo do curso havia sempre um convidado a falar, entre eles Gilles Deleuze, Octave Manonni, entre outros. Era um espetáculo, assistido pelos estudantes franceses e estrangeiros, entre eles quem passava por Paris por tempo curto”.

Vera Casa Nova, que teve os primeiros contatos com a obra de Barthes em 1968, em um curso ministrado pela professora Dirce Cortes Riedel no Rio de Janeiro, na antiga UEG (hoje UERJ), destaca que Barthes continua atual e importante para compreender as questões não só da literatura, mas também da arte contemporânea e da comunicação de massa. “O olhar de Barthes persegue os sentidos (e os não-sentidos) em qualquer arte, sobretudo em suas abordagens críticas sobre a comunicação de massa. No evento em comemoração ao centenário, 'Roland Barthes Plural', realizado em junho na Casa das Rosas, em São Paulo, vi isso claramente. Quem lê Barthes ama-o e essa afetividade, como ele queria que fosse nossa maior potência, deixa-nos impregnados. Ao citar suas ideias e textos, os atualizamos”.













Atualidades de Roland Barthes presentes
na Cultura de Massa –– em 2011, Barthes e
outros filósofos visitaram um dos episódios
de The Simpsons: a partir da esquerda,
Immanuel KantSocratesWittgenstein,
Karl MarxBarthes, Jean-Paul Sartre,
Frederich Nietzsche e Michel Foucault.
Em 1967, na caricatura de Maurice Henry
publicada na revista La Quinzaine Littéraire
(a partir da esquerda, Michel Foucault,
Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss e
Barthes). Também acima, encontro da equipe da
revista Tel Quel em 1974 no Café Le Bonaparte,
Paris. A partir da esquerda, Philippe Sollers,
Marcelin Pleynet, Josephine Fellier, Julia Kristeva,
Barthes, François Wahl e Severo Sarduy,
fotografados por Mario Dondero.

Abaixo, grafite no Collège de France em
homenagem ao centenário de Barthes;
e Barthes como ator, interpretando o
o escritor britânico do século 19
William Makepeace Thackeray em
As irmãs Brontë (Les soeurs Brontë),
filme de 1979 de André Téchiné que
também tem no elenco, no papel das
três irmãs escritoras, as atrizes
Marie-France Pisier (Charlotte),
Isabele Adjani (Emily) e
Isabelle Huppert (Anne)











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O olhar atento de Roland Barthes sobre diferentes textos e linguagens diversas, sua postura crítica, também são ressaltados por Angela Senra, que aponta a importância das primeiras experiências sobre a recepção de Barthes no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, durante a ditadura militar. "Na década de 1960 e mesmo nos primeiros anos de 1970, Barthes ainda 'não cabia' no Brasil. O ambiente intelectual era bastante conservador. O golpe militar de 1964 intensificou a linha pétrea de pensamento. Havia alguns intelectuais 'à esquerda' mas, eles também, eram dogmáticos. Barthes foi chegando devagar, com outros pensadores que participaram da efervescência cultural francesa de 1968, 1970... Foucault, Deleuze, Guattari, Lacan, Derrida, Blanchot. Barthes e todos esses intelectuais deram importante contribuição para a cultura brasileira moderna".



Fragmentos para uma Fotobiografia



Os escritos e os ensinamentos de Roland Barthes percorrem um dos caminhos mais originais da crítica contemporânea e da Teoria da Cultura. Em sua trajetória biográfica e teórica, um dos textos que considero mais importantes, por motivos diversos, talvez seja “A Câmara Clara” (La Chambre Claire, 1980), o último livro que publicou em vida. Em sua mistura incomparável de pesquisa acadêmica, diário confessional e tese sobre a Semiótica da Fotografia, “A Câmara Clara” representa, de uma só vez, um momento de síntese e de ruptura – no que se refere às principais questões e conceitos desenvolvidos pelo autor em busca de uma teoria sobre a linguagem específica dos signos não-verbais.









Fragmentos para uma Fotobiografia: acima,
Barthes com sua mãe, Henriette, em 1923,
e no Liceu Montaigne, em 1930.

Abaixo, Barthes aos 27 anos, em 1942,
durante a Segunda Guerra, no período
em esteve internado no sanatório
estudantil de Saint-Hilaire-du-Touvet
para tratamento de tuberculose







Considerado por muitos como o mais autobiográfico de todos os livros que Barthes publicou – e, talvez, também o mais filosófico – “A Câmara Clara” apresenta um discurso fragmentado, francamente subjetivo e não linear, a meio-fio entre o ensaio e o romance. Relato afetivo, pontuado de metalinguagem sobre a pesquisa e o método, mas longe de estabelecer uma metodologia reconfortante, este último livro de Barthes, mais do que todos os outros que ele publicou, merece por certo o adjetivo “inquietante”.

São as questões e conceitos elaborados por Barthes, especialmente em “A Câmara Clara”, que fundamentam esta seleção de imagens biográficas sobre sua trajetória, aqui reproduzida ––  e que também apresentei em uma conferência intitulada "Fragmentos para uma Fotobiografia", na abertura da Jornada Barthes, na UFMG, realizada em homenagem ao seu centenário de nascimento.



1. Álbum de Família

Roland Barthes aos 8 anos, em 1923, no colo de sua mãe, Henriette Barthes, fotografados em frente à casa da família em Cherbourg-Octeville, região Norte da França.


2. Liceu Montaigne

Barthes aos 15 anos, em 1930, quando era estudante do Liceu Montaigne, em Paris. É no Liceu que Barthes descobre o gosto pelos dicionários e pela etimologia. 


3. Sanatório de Saint-Hilaire-du-Touvet

Barthes aos 27 anos, em 1942, quando esteve internado no sanatório estudantil de Saint-Hilaire-du-Touvet para tratamento de tuberculose. Foi na revista “Existences”, editada pelos alunos e professores do sanatório, que Barthes publicou seus primeiros textos. 







4. Alexandria, Egito

Acima, Barthes aos 35 anos, em 1950, durante a temporada em que trabalhou como professor em Alexandria, no Egito, onde também concluiu as pesquisas e rascunhos do que seria seu primeiro livro publicado, “O Grau Zero da Escritura” (Le Degré Zéro de L'Écriture, 1953).


5. Barthes por Cartier-Bresson

Abaixo, Barthes fotografado por Henri Cartier-Bresson em sua casa, em Paris, em 1963 – ano em que publica um de seus livros que geraram grandes polêmicas, “Sobre Racine” (Sur Racine). 







6. Barthes no Marrocos

Barthes fotografado no Marrocos, em 1969, quando passou uma temporada naquele país como professor da Faculdade de Letras de Rabat. As anotações de Barthes sobre a temporada no Marrocos dariam origem ao livro “Incidentes” (Incidents, 1987).


7. Na China com Kristeva

Barthes com Julia Kristeva durante a viagem de uma delegação francesa à China, em 1974. Da delegação, além de Barthes e Kristeva, também participaram Philippe Sollers, Marcelin Pleynet e François Wahl. As anotações de Barthes sobre a viagem foram publicadas no livro “Cadernos da Viagem à China” (Carnet du Voyage em Chine, 2009).








Fragmentos para uma Fotobiografia: acima,
Barthes no Marrocos, em 1969, quando trabalhou
como professor da Faculdade de Letras de Rabat.
Abaixo, com Julia Kristeva durante a viagem
da delegação francesa à China, em 1974












8. Um escritor ao piano

Barthes tocando piano em casa, fotografado em 1975 por Sophie Bassouls. O pesquisador dos signos e dos textos literários e não-verbais praticava música desde a infância, tanto no piano como no canto. Barthes sabia ler partituras como um mestre e durante as décadas de 1930 e 1940 chegou a escrever partituras para piano, voz, flauta e violoncelo. Durante sua trajetória, publicou diversos artigos dedicados à análise musical. Schumann era seu compositor favorito. 


9. Aula no Collège de France

Barthes fotografado na tarde do dia 7 de janeiro de 1977, durante sua aula inaugural para a cátedra de “Semiologia Literária” no Collège de France. A apresentação de Barthes, considerada magistral pelos alunos e pela banca de avaliação, posteriormente foi publicada no livro “Aula” (Leçon, 1978). 


10. A última fotografia

Barthes em sua última fotografia, em 25 de fevereiro de 1980. Barthes enviou os originais para a publicação de “A Câmara Clara” e seguiu a caminho do apartamento de Philippe Serre, na rua des Blancs-Manteaux, no Marais, em Paris, onde participaria de um almoço junto com outros intelectuais e o futuro presidente da França, François Miterrand. Depois do almoço, quando retornava para sua casa, Barthes foi atropelado ao atravessar a rua des Écoles. Foi hospitalizado, mas morreria de complicações decorrentes do acidente, exatamente um mês depois, em 26 de março. Estava com 64 anos.



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Atualidades de Barthes. In: Blog Semióticas, 12 de novembro de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/11/atualidades-de-barthes.html (acessado em .../.../…).


Para acessar o Dossiê Barthes publicado na revista "Em Tese"
da UFMG, clique na imagem abaixo:





Assista o programa de TV produzido pela Rede Minas
em homenagem ao centenário de Roland Barthes:






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Fragmentos para uma Fotobiografia:
no alto, Roland Barthes em 1977, durante
sua aula inaugural da cátedra de “Semiologia
Literária”, ministrada no Collège de France.
Acima, a última foto, em 25 de fevereiro de 1980


10 de abril de 2012

Outros Borges








Sempre imaginei que o paraíso
será uma espécie de biblioteca.

–– Jorge Luis Borges (1899-1986).




Se eu tivesse vivido no século 19, seria um mínimo, um anônimo latino-americano. No nosso século carente de referências importantes, terminei como objeto de leitura e desperto muita curiosidade nas pessoas”, disse Jorge Luis Borges em sua última entrevista, gravada em Buenos Aires pelo jornalista Roberto D’Ávila e o cineasta Walter Salles em outubro de 1985 e exibida no programa “Conexão Internacional”, na extinta TV Manchete. Poucos dias depois da entrevista, concedida à equipe brasileira na casa em que morou durante décadas, Borges embarcou para a Europa com sua secretária Maria Kodama e morreu em Genebra, Suíça, em 14 de junho de 1986, aos 86 anos.

O mais célebre escritor da América espanhola, o mesmo e sempre um outro, para muitos uma das referências mais citadas por outros escritores, pelos acadêmicos e pelos cientistas, Borges também declarou naquela última entrevista, com sua ironia que não raro desconcertava seus interlocutores, que seu maior sonho era ser um dia esquecido pelos leitores. O sonho de Borges, traduzido e publicado em numerosos idiomas, não foi cumprido: ele, definitivamente, não foi esquecido. Muito pelo contrário.

Mais de três décadas depois de morto, o prestígio internacional e a presença mítica de Borges e sua literatura permanecem em franca ascensão. O estilo conciso e erudito tornado imortal em seus contos e seus breves relatos sobre a vida e a arte, a cada ano que passa, retorna com apelo sempre renovado para novos e antigos leitores. O que não falta nas livrarias são lançamentos e relançamentos de livros de Borges e sobre Borges.












Entre os lançamentos recentes estão as edições de entrevistas concedidas na década de 1980 pelo escritor, no auge da capacidade criativa e filosófica, na biblioteca de sua casa, ao amigo e jornalista Osvaldo Ferrari. Os 90 encontros produzidos para irem ao ar pela Rádio Municipal de Buenos Aires, que também foram publicados no jornal “Tiempo Argentino”, saem no Brasil em versão integral, em três livros da editora Hedra: “Sobre os Sonhos e Outros Diálogos”, “Sobre a Filosofia e Outros Diálogos” e “Sobre a Amizade e Outros Diálogos”, todos organizados e traduzidos por John O’Kuinghttons.



Prelúdio para o diálogo



Tento esquecer todos os muitos preconceitos que tenho e aprendi aquele admirável hábito de supor que o interlocutor tem razão. Podemos estar errados, o interlocutor pode estar tão errado quanto nós, mas, de qualquer forma, o fato de supor que o interlocutor tem razão é um bom prelúdio para o diálogo”, defende Borges com sua ironia característica em “Sobre a Filosofia”. 









Outros Borges: no alto da página, acima
e abaixo, Jorge Luis Borges 
em 1968,
fotografado por Sara Facio na época em que
Borges era diretor da Biblioteca Nacional
em Buenos Aires, Argentina.

Também abaixo, Borges e seus gatos:
Beppo
o gato branco com o qual o escritor
conviveu 
durante 15 anos e que foi batizado
com o nome do personagem criado por Byron,
Odin
o gato birmanês com o nome do
deus mais importante da mitologia nórdica,
que foi sua 
companhia em Buenos Aires nos
últimos anos de vida, 
em fotografias de
1980 de
Paola Agosti. Borges também
teve outros gatos, dois deles registrados
em fotos muito conhecidas: Freyja,
a gata da Abissínia que foi batizada em
homenagem à deusa do amor e da beleza
na mitologia nórdica (na fotografia em preto
e branco de 1982 de Amanda Ortega) e
um misterioso gato preto que está nas
fotografias da capa da primeira edição
de Uma antologia pessoal (1968) e
na primeira edição em inglês de
A personal anthology, de 1994









Outra série de entrevistas concedidas pelo escritor que chegou às livrarias é “Ensaio Autobiográfico”, relançamento da Companhia das Letras, em tradução de Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz. A edição reúne a transcrição saborosas das conversas mantidas por Borges com um de seus tradutores, o jornalista norte-americano Norman Thomas di Giovanni.

Em sua maior parte ditados em inglês por Borges a seu interlocutor nos primeiros meses de 1970, os textos do livro tiveram sua primeira publicação na revistaThe New Yorker”, contribuindo para popularizar a literatura e a personalidade do escritor entre o público de língua inglesa. Até então, a fama e o prestígio de Borges estavam restritos, fora da Argentina, aos leitores mais eruditos dos países da Europa e ao público universitário, graças a cursos e palestras que o escritor apresentou nos Estados Unidos durante a década de 1960.
























No “Ensaio Autobiográfico”, Borges comenta sobre seus ancestrais paternos e maternos, sobre sua infância quase isolada do mundo, suas experiências ruins na escola e aquilo a que ele sempre nomeia como "evento principal" de sua vida: a grande biblioteca de seu pai, da qual ele acreditava "nunca ter saído". A partir dessas primeiras leituras, quase todas em inglês, ele traça a autobiografia literária e intelectual que compõe o cerne do livro.

Muitas outras referências das mais preciosas para compreender a formação e a carreira de um dos escritores mais singulares do último século também surgem no “Ensaio Autobiográfico”. No relato de Borges sobre si mesmo não faltam confissões discretas e pitadas controvertidas de política, entre elas os comentários que deixam transparecer seu ódio por Perón ("em 1946 subiu ao poder um presidente cujo nome não quero lembrar"). A aversão vem do fato de ter sido durante o governo de Perón que um memorando levou Borges a ser "promovido" do cargo de bibliotecário a inspetor de aves e coelhos nos mercados municipais de Buenos Aires. 















Jorge Luis Borges: acima, em três de seus
mais emblemáticos retratos, registrados em
1984 pelo italiano Ferdinando Scianna.

Abaixo, Borges em seu apartamento em
Buenos Aires, em novembro de 1981,
fotografado por Eduardo Di Baia; e Borges
na antiga sede da Biblioteca Nacional,
também em Buenos Aires, em 1955, na época
em que foi nomeado diretor da instituição










            















Um dos mais longos textos de um autor conhecido pela concisão exemplar, "Ensaio Autobiográfico" foi pensado inicialmente para ser uma breve introdução à edição norte-americana de The Aleph and other stories”, mas acabou ganhando outras dimensões. Além de apresentar e discutir as referências de seu imaginário, Borges faz generosas menções a grandes amigos, como Macedonio Fernández e seu parceiro em algumas obras, Adolfo Bioy Casares. Mas não cita as mulheres ou sua vida amorosa. Ao leitor atento, Borges reserva lições surpreendentes, como a confissão pessoal que encerra o relato:

"Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto ao fracasso e à fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam. Agora o que procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado". Estava com 71 anos. 












Borges entre amigos em Buenos Aires:
no alto, à direita, em Mar del Plata, com
Victoria Ocampo Adolfo Bioy Casares.
Acima, com Estela Canto em 1945; e com
amigos em Mar del Plata em 1964 (a partir
da esquerda, Borges, Maria Esther Vásquez,
Silvina Ocampo, Cecília Boldarin, Bioy Casares
e Martha Bioy). Abaixo, Borges com Bioy
Casares em Buenos Aires, na década de
1950; e em Barcelonaem 1985,
fotografados por Julio Giustozza.

Também abaixo, Jorge Luis Borges
com alguns de seus interlocutores e
também escritores: com o argentino
Ernesto Sabato (na década de 1970),
compartilhando um café e passeando
pela Plaza Dorrego, em Buenos Aires;
com o italiano Italo Calvino (na década
de 1980); com o mexicano Octavio Paz
durante visita ao México em 1981;
Borges aos 3 anos, em 1904; o escritor
com sua mãe, Leonor Acevedo; em 1983,
fotografado na biblioteca de seu apartamento
em Buenos Aires por Christopher Pillitz; e em
mais quatro retratos: nos dois primeiros,
fotografado por Alicia D'Amico, e nos dois
seguintes fotografado por Sylvia Plachy











Visão de mundo



Entre os lançamentos recentes também está “O Olhar de Borges – Uma Biografia Sentimental” (Editora Autêntica), de Solange Ordóñez, filha Carlos Fernández Ordóñez, advogado de Borges que herdou seus célebres cadernos de rascunhos e morreu três meses após o escritor. No relato de Solange, a aproximação familiar desde a infância com o escritor permite o viés “sentimental” nos estudos e descrições sobre os rascunhos Borges. Nos cadernos, preenchidos dos anos 1920 até os anos 1950, quando perdeu a visão, Borges anotou aforismos, aulas e as primeiras versões de algumas conferências que ministrou.

Também merece destaque nas livrarias “O Século de Borges”, da professora da UFMG Eneida Maria de Souza, relançado depois de dez anos. Editado pela Autêntica, o livro reúne 11 ensaios nos quais Eneida recria o universo de Borges com base em determinadas situações vividas pelo escritor. Temas como o exílio, as guerras, a cegueira e a morte, os grandes dilemas do homem contemporâneo, são avaliados em leitura atenta às particularidades “borgianas” e aos passos de sua biografia.









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Minha terra tem palmeiras”, primeiro ensaio do livro de Eneida Maria de Souza, aborda certas questões sobre Borges e a identidade nacional – destacando que “para o escritor argentino, a pátria, se existe como identidade, ocupa um espaço imaginário, cujas fronteiras não coincidem com as da nação”. O mesmo tema é retomado nos ensaios seguintes, principalmente em “Genebra, 14 de junho de 1986”, que discute a escolha de Borges por morrer na cidade suíça, que ele conheceu teria conhecido na juventude.

Segundo o relato de Borges registrado no programa “Conexão Internacional”, na passagem pelo Brasil, durante aquela viagem em sua juventude, ele teria ouvido um serviçal cantar uma canção inspirada no poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Na entrevista, Borges cantarola os versos em português, dos quais ele nunca mais esqueceu:


Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá
As aves, que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá...















Em exercício de maestria em literatura comparada, o ensaio de Eneida cita os mesmos versos para recorrer ao tema do duplo, muito presente na obra de Borges, em sua relação com Stevenson, Freud e Oscar Wilde, entre outros. E lembra que, diferente do romântico brasileiro Gonçalves Dias (1823-1864), que sonhava morrer em solo pátrio, como símbolo de um novo nascimento, Borges preferiu morrer no lugar que simboliza o nascimento, não do corpo, mas do intelectual para o conhecimento e a literatura.

Outro lançamento sobre o autor de “História Universal da Infâmia” (1935) vem da Editora UFMG: “Borges e Outros Rabinos”, de Lyslei Nascimento, que aborda a apaixonada leitura de Borges sobre elementos da cultura judaica. Na trilha das referências e citações da Bíblia e dos símbolos do judaísmo na obra do escritor, o livro é uma versão da tese de doutorado da autora, que é professora da da UFMG.

 





Os grandes escritores não envelhecem nunca. Muito pelo contrário, estão sempre atuais. Veja Shakespeare, Cervantes ou Machado de Assis”, aponta Lyslei Nascimento. “No caso de Borges, trata-se de uma obra que se confunde com o próprio conceito de literatura. Ou melhor, é uma literatura produzida à moda dos rabinos, na qual a verdade está sempre sendo escrita, sendo construída como um comentário ou uma interpretação, nunca é completa”. Para a professora, que também coordena o Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, Borges encontra na Bíblia uma das razões de sua revolucionária arte de narrar, construída de citações e comentários sobre os autores da biblioteca universal.



O cadáver ilustre



Assim como no modo judaico de escrita e interpretação da escrita, Borges reescreve a verdade”, alerta a professora. “Sua literatura abole os conceitos de originalidade e de autoria, no papel de traduzir a tradição da cultura. É uma literatura que prova que a verdade depende sempre do ponto de vista. Meu objetivo foi ler nos textos de Borges símbolos como o Aleph, o Golem, a narrativa policial e os contos sobre a Shoah”, conclui.  













Situando-se às margens das preocupações sociais comuns à maior parte dos escritores latino-americanos, Borges permanece aberto à pesquisa e ao diálogo. Como destaca ele próprio, em “Sobre a Filosofia”: “O diálogo é um dos melhores hábitos do homem, inventado, como quase todas as coisas, pelos gregos. Os gregos começaram a conversar e continuamos desde então”.

Herdeiro de uma cegueira hereditária, Borges, gradativamente, vai ficando cego a partir dos 45 anos. Por ironia do destino, o avanço da cegueira coincide com o melhor da literatura que ele iria produzir, incluindo a publicação de seus livros mais famosos, “Ficções” (1944) e “O Aleph” (1949), ambos coletâneas de histórias curtas interligadas por temas como os sonhos, espelhos, labirintos, bibliotecas, Deus e as religiões.

Nas palavras de Borges, "os poetas, como os cegos, podem ver no escuro". É como se o escritor começasse a usar a imaginação para “enxergar” e criar sua poética a partir da memória visual de imagens e de leituras armazenadas antes da perda da visão real. A expressão “ver com os olhos da imaginação” o próprio Borges retirou de um verso da “Divina Comédia” de Dante Alighieri (1265–1321): “Poi piovve dentro a l’alta fantasia”.









A chuva, ao produzir imagens de pouca nitidez, forma uma espécie de cortina que chega a embaçar a visão: daí a estratégia narrativa de Borges de assumir máscaras de outros Borges e outros escritores, reais ou fictícios, assumindo o papel de um ator na ação imaginária para produzir uma obra literária feita de ecos e espelhos, calcada na fantasia. Através da invenção literária, Borges passaria a “enxergar” o que um homem de visão pensa que vê e o que o cego não parece poder enxergar: a vida inventada passaria então a fazer parte da existência real, cotidiana.

Os desdobramentos da literatura de Borges também nos levam até “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, conto publicado pela primeira vez em 1940 e incluído em “Ficções”, que relata a criação concretizada por meio da linguagem. Na história, um artigo enciclopédico sobre um enigmático país chamado Uqbar é a primeira indicação sobre Orbis Tertius, gigantesca conspiração de intelectuais para imaginar (e possivelmente criar) um novo mundo: Tlön.

 









Últimas fotos: Borges e Maria Kodama
em junho de 1986 passeiam por Genebra
(acima e abaixo). Também abaixo, o escritor
homenageado em uma caricatura de autor
anônimo e seu túmulo em Genebra, Suíça,
com a lápide que apresenta uma imagem de
guerreiros talhados na pedra e uma inscrição
abaixo do nome de Borges com a citação
de um poema anglo-saxão do século 10,
A batalha de Maldon, traduzido por
Borges, que evoca uma batalha heroica
contra invasores vikings. A inscrição diz
"And ne forhtedon na" e pode ser
traduzida por Não tenha medo.
No final da página, uma homenagem
ao escritor nas ruas de Buenos Aires








A realidade de Tlön, recriada, se afirma como imagem inversa do mundo real, imagem em um espelho imaginário, em que as coisas se duplicam. Borges, que por capricho do destino traz no próprio sobrenome a forma plural, segue e refaz, sutilmente, as leis não escritas do espaço e do infinito em jogos de espelho que refletem, duplicam, atualizam os grandes clássicos da literatura fantástica.

No universo que a escrita de Borges circunscreve, a criação pelas letras e pelos reflexos de outros livros, outros autores, passa a ser compreendida como um processo de transfiguração. Este processo está representado em alguns de seus contos mais celebrados, que fornecem autênticas pedras angulares sobre o próprio Borges e sobre seus duplos, como se vê em “Pierre Menard, autor do Quixote” ou em “Funes, o Memorioso”, entre tantos outros. Sua herança, contudo, ainda gera polêmicas no mundo real.







A Fundação Borges, fundada por sua viúva, Maria Kodama, em 1995, segue mal vista pelo público e por setores da intelectualidade dentro e fora da Argentina. Muitos consideram Kodama uma “aproveitadora” porque ela se casou com o escritor apenas dois meses antes dele morrer, em 14 de junho de 1986. Quase tudo ficou com a viúva – incluindo os bens da herança e os direitos autorais. Ela diz que conheceu Borges aos 12 anos, quando foi levada pelo pai a uma conferência do escritor em Buenos Aires. 

Depois de acompanhar a participação de Borges em eventos públicos e de se matricular em alguns cursos com o escritor, Kodama passou a trabalhar como sua secretária a partir de 1975. Desde a morte do autor de "Ficções", Kodama tem se dedicado “full time” à fundação, primeiro na criação da entidade e depois na manutenção do acervo. A Fundação Borges, com sede em Buenos Aires, organiza exposições e eventos na Argentina e no exterior. Também gerencia o espólio e detém os direitos sobre traduções e edições das obras completas de Borges.

O corpo do escritor, que repousa no cemitério de Plainpalais em Genebra, também tem gerado mais de uma controvérsia nas últimas décadas. Recentemente, políticos argentinos chegaram a fazer uma campanha para tentar trazer de volta os restos mortais às terras portenhas – mas a iniciativa fracassou. As autoridades suíças não abriram mão dos direitos sobre o cadáver ilustre.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Outros Borges. In: Blog Semióticas, 10 de abril de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/04/outros-borges.html (acessado em .../.../…).




















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