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12 de novembro de 2015

Atualidades de Barthes






Saber que não escrevemos para o outro, saber que essas coisas
que eu vou escrever jamais me farão amado de quem amo, saber
que a escrita não compensa nada, que ela está precisamente ali
onde você não está –– é o começo da escrita.

 ––  Roland Barthes, "Fragmentos   
de um Discurso Amoroso" (1977).     
 
Mais de três décadas depois de sua morte, as homenagens ao centenário de nascimento de Roland Barthes, completado neste dia 12 de novembro de 2015, confirmam sua importância valiosa e inquestionável como um dos principais pensadores de nossa época e um dos nomes mais influentes de sua geração. Barthes – o professor com “p” maiúsculo que postulou uma “Ciência dos Signos” – sempre erudito, sedutor, instigante e inquietante, surge nas mais de 6 mil páginas de sua “Obra Completa” como um autor de difícil classificação e um “sujeito impuro”, na definição dele mesmo. Na falta de um rótulo melhor, ele ainda é, quase sempre, chamado de “crítico” – mas talvez mereça ser nomeado, de forma mais fulgurante, como um grande “escritor”: um escritor disfarçado de pensador.

O escritor Roland Barthes demonstrou que não busca a diferença entre verdade e aparência. Muito pelo contrário. Para ele, tudo no mundo é aparência, tudo é linguagem e superfície: tudo é texto, inclusive a variedade dos aspectos não verbais, o pictórico, o fotográfico, os gestos, os afetos, passíveis de interpretações plurais e complementares – como ele próprio argumentou, desde a década de 1950, em suas abordagens de intérprete original dos códigos da cultura de massa, das instituições literárias, das ideologias e dos diversos sistemas de signos codificados na vida cotidiana.

Se é verdade que, por longo tempo, quis inscrever meu trabalho no campo da ciência literária, lexicológica ou sociológica” – disse Barthes em sua magistral aula inaugural em 1977, no Collège de France, depois transformada em livro – "devo reconhecer que produzi tão somente ensaios, gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise". A teoria, sutil e original, que emerge dos ensaios de Barthes, com a permanência de sua presença e sua influência na atualidade, é destacada nas entrevistas que fiz, a convite da revista “Em Tese”, da UFMG, com três das professoras da universidade que têm importância fundamental como precursoras dos estudos sobre ele: Angela Senra, Eneida Maria de Souza e Vera Casa Nova (veja, no final deste artigo, os links para a íntegra das entrevistas e para o programa de TV da Rede Minas sobre o centenário de Barthes).




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Atualidades de Roland Barthes: no alto,
Barthes aos 35 anos, em 1950, quando
trabalhou como professor em Alexandria,
no Egito. Acima, Barthes em casa, em seu
escritório de trabalho, em Paris, fotografado em
dois momentos: em 1975, por Sophie Bassouls;
em 1978, por Jerry Bauer. Também acima,
um retrato do escritor em lápis sobre papel
feito por Alan Brooks em 2010 a partir
de uma fotografia de Barthes no escritório
feita por Julian Guindeau para a revista
L'Express na década de 1970 (abaixo).

Também abaixo, Barthes recebe a visita de
Umberto Eco em Paris: o mestre encontra
um dos seus discípulos, fotografados
por Macchi Polymnia em 1970









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Subversivo, sóbrio, elegante



A primeira pergunta que apresento, nas três entrevistas, é sobre o papel e o lugar de Roland Barthes na atualidade. Qual é a melhor definição para Barthes? Escritor, professor, pensador, sociológico, ensaísta, crítico da literatura, da linguagem, da moda, da mídia, da arte, teórico da Semiótica, da Semiologia, da Cultura? Existencialista, marxista, estruturalista, moderno, pós-moderno?

É por demais notória a importância de Roland Barthes para a crítica literária e cultural”, explica Eneida Maria de Souza. “Sua atuação em vários campos do saber, indo da crítica literária às artes plásticas, não cessa de ser reatualizada pelos novos estudiosos nas academias e em pesquisas desvinculadas dos saberes institucionalizados. Com a publicação de textos inéditos, como diários e aulas ministradas no Collège de France, temos uma leitura renovada de seu legado.”


















Atualidades de Roland Barthes: imagens 
do escritor em 1977, durante entrevistas às
TVs francesas, falando sobre o lançamento
de uma de suas obras-primas, o livro 
Fragmentos de um Discurso Amoroso.
 
Abaixo, Barthes em Paris, em fotografia
de 1970 de Macchi Polymnia; e em três
momentos no ano de 1979: fotografado
por Marion Kalter e, a seguir, por
Ulf Andersen e por David Herali





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Para Vera Casa Nova, não há definições que possam enquadrar a presença e a importância de Roland Barthes. “Ele é plural por excelência. Sua função foi e será o questionamento, a desconstrução dos saberes e seus textos. Esse é o papel de Roland Barthes, ontem, hoje e sempre, sem modismos teóricos. Com certeza ele não gostaria de ser de alguma forma rotulado, pois com todas essa funções que você enumerou, ele só poderia ser esse sujeito plural a que me referi anteriormente. Cito ele mesmo – Eu sou eu mesmo meu próprio símbolo. Eu sou a história que me acontece: uma roda livre na linguagem... Je n’ai rien à quoi me comparer... inumeráveis são as narrativas do mundo...”

"Barthes é o intelectual subversivo, o professor formador de outros intelectuais, situando os imaginários da relação didática", completa Angela Senra. "Fui aluna de Barthes na Escola Prática dos Altos Estudos, em Paris, em 1971 e 1972. Descobrimos, com Barthes, um processo permanente de invenção. Assim como faz em seus textos, o Barthes em sala de aula reinventava citações, chegava ao inter-texto. Aos deslocamentos. Barthes é uma lição permanente: ele é o intelectual e professor 'desconfiado'. Aquele que questiona os mecanismos do poder, subverte as diferentes linguagens. E era um homem sóbrio, elegante. Cortês. Polidez nas palavras, nos gestos. Voz baixa. Tranquilidade na fala. Continuei e continuo lendo Barthes".

















O pensamento libertário



Eneida Maria de Souza também recorda a elegância e o estilo incomparável de Roland Barthes em sala de aula. “Assisti às aulas de Barthes quando fui para Paris para o Doutorado, em 1978. A partir daí, o contato com sua obra foi mais intenso, com as publicações de 'A Câmara Clara', de artigos escritos no 'Nouvel Observateur' e na sua atenção mais centrada nas disciplinas afins da literatura, como o cinema e a fotografia. Assisti a várias aulas no Collège de France ministradas por ele, as quais me fizeram conviver com sua maneira magistral de proferir conferências. No segundo tempo do curso havia sempre um convidado a falar, entre eles Gilles Deleuze, Octave Manonni, entre outros. Era um espetáculo, assistido pelos estudantes franceses e estrangeiros, entre eles quem passava por Paris por tempo curto”.

Vera Casa Nova, que teve os primeiros contatos com a obra de Barthes em 1968, em um curso ministrado pela professora Dirce Cortes Riedel no Rio de Janeiro, na antiga UEG (hoje UERJ), destaca que Barthes continua atual e importante para compreender as questões não só da literatura, mas também da arte contemporânea e da comunicação de massa. “O olhar de Barthes persegue os sentidos (e os não-sentidos) em qualquer arte, sobretudo em suas abordagens críticas sobre a comunicação de massa. No evento em comemoração ao centenário, 'Roland Barthes Plural', realizado em junho na Casa das Rosas, em São Paulo, vi isso claramente. Quem lê Barthes ama-o e essa afetividade, como ele queria que fosse nossa maior potência, deixa-nos impregnados. Ao citar suas ideias e textos, os atualizamos”.













Atualidades de Roland Barthes presentes
na Cultura de Massa –– em 2011, Barthes e
outros filósofos visitaram um dos episódios
de The Simpsons: a partir da esquerda,
Immanuel KantSocratesWittgenstein,
Karl MarxBarthes, Jean-Paul Sartre,
Frederich Nietzsche e Michel Foucault.
Em 1967, na caricatura de Maurice Henry
publicada na revista La Quinzaine Littéraire
(a partir da esquerda, Michel Foucault,
Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss e
Barthes). Também acima, encontro da equipe da
revista Tel Quel em 1974 no Café Le Bonaparte,
Paris. A partir da esquerda, Philippe Sollers,
Marcelin Pleynet, Josephine Fellier, Julia Kristeva,
Barthes, François Wahl e Severo Sarduy,
fotografados por Mario Dondero.

Abaixo, grafite no Collège de France em
homenagem ao centenário de Barthes;
e Barthes como ator, interpretando o
o escritor britânico do século 19
William Makepeace Thackeray em
As irmãs Brontë (Les soeurs Brontë),
filme de 1979 de André Téchiné que
também tem no elenco, no papel das
três irmãs escritoras, as atrizes
Marie-France Pisier (Charlotte),
Isabele Adjani (Emily) e
Isabelle Huppert (Anne)











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O olhar atento de Roland Barthes sobre diferentes textos e linguagens diversas, sua postura crítica, também são ressaltados por Angela Senra, que aponta a importância das primeiras experiências sobre a recepção de Barthes no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, durante a ditadura militar. "Na década de 1960 e mesmo nos primeiros anos de 1970, Barthes ainda 'não cabia' no Brasil. O ambiente intelectual era bastante conservador. O golpe militar de 1964 intensificou a linha pétrea de pensamento. Havia alguns intelectuais 'à esquerda' mas, eles também, eram dogmáticos. Barthes foi chegando devagar, com outros pensadores que participaram da efervescência cultural francesa de 1968, 1970... Foucault, Deleuze, Guattari, Lacan, Derrida, Blanchot. Barthes e todos esses intelectuais deram importante contribuição para a cultura brasileira moderna".



Fragmentos para uma Fotobiografia



Os escritos e os ensinamentos de Roland Barthes percorrem um dos caminhos mais originais da crítica contemporânea e da Teoria da Cultura. Em sua trajetória biográfica e teórica, um dos textos que considero mais importantes, por motivos diversos, talvez seja “A Câmara Clara” (La Chambre Claire, 1980), o último livro que publicou em vida. Em sua mistura incomparável de pesquisa acadêmica, diário confessional e tese sobre a Semiótica da Fotografia, “A Câmara Clara” representa, de uma só vez, um momento de síntese e de ruptura – no que se refere às principais questões e conceitos desenvolvidos pelo autor em busca de uma teoria sobre a linguagem específica dos signos não-verbais.









Fragmentos para uma Fotobiografia: acima,
Barthes com sua mãe, Henriette, em 1923,
e no Liceu Montaigne, em 1930.

Abaixo, Barthes aos 27 anos, em 1942,
durante a Segunda Guerra, no período
em esteve internado no sanatório
estudantil de Saint-Hilaire-du-Touvet
para tratamento de tuberculose







Considerado por muitos como o mais autobiográfico de todos os livros que Barthes publicou – e, talvez, também o mais filosófico – “A Câmara Clara” apresenta um discurso fragmentado, francamente subjetivo e não linear, a meio-fio entre o ensaio e o romance. Relato afetivo, pontuado de metalinguagem sobre a pesquisa e o método, mas longe de estabelecer uma metodologia reconfortante, este último livro de Barthes, mais do que todos os outros que ele publicou, merece por certo o adjetivo “inquietante”.

São as questões e conceitos elaborados por Barthes, especialmente em “A Câmara Clara”, que fundamentam esta seleção de imagens biográficas sobre sua trajetória, aqui reproduzida ––  e que também apresentei em uma conferência intitulada "Fragmentos para uma Fotobiografia", na abertura da Jornada Barthes, na UFMG, realizada em homenagem ao seu centenário de nascimento.



1. Álbum de Família

Roland Barthes aos 8 anos, em 1923, no colo de sua mãe, Henriette Barthes, fotografados em frente à casa da família em Cherbourg-Octeville, região Norte da França.


2. Liceu Montaigne

Barthes aos 15 anos, em 1930, quando era estudante do Liceu Montaigne, em Paris. É no Liceu que Barthes descobre o gosto pelos dicionários e pela etimologia. 


3. Sanatório de Saint-Hilaire-du-Touvet

Barthes aos 27 anos, em 1942, quando esteve internado no sanatório estudantil de Saint-Hilaire-du-Touvet para tratamento de tuberculose. Foi na revista “Existences”, editada pelos alunos e professores do sanatório, que Barthes publicou seus primeiros textos. 







4. Alexandria, Egito

Acima, Barthes aos 35 anos, em 1950, durante a temporada em que trabalhou como professor em Alexandria, no Egito, onde também concluiu as pesquisas e rascunhos do que seria seu primeiro livro publicado, “O Grau Zero da Escritura” (Le Degré Zéro de L'Écriture, 1953).


5. Barthes por Cartier-Bresson

Abaixo, Barthes fotografado por Henri Cartier-Bresson em sua casa, em Paris, em 1963 – ano em que publica um de seus livros que geraram grandes polêmicas, “Sobre Racine” (Sur Racine). 







6. Barthes no Marrocos

Barthes fotografado no Marrocos, em 1969, quando passou uma temporada naquele país como professor da Faculdade de Letras de Rabat. As anotações de Barthes sobre a temporada no Marrocos dariam origem ao livro “Incidentes” (Incidents, 1987).


7. Na China com Kristeva

Barthes com Julia Kristeva durante a viagem de uma delegação francesa à China, em 1974. Da delegação, além de Barthes e Kristeva, também participaram Philippe Sollers, Marcelin Pleynet e François Wahl. As anotações de Barthes sobre a viagem foram publicadas no livro “Cadernos da Viagem à China” (Carnet du Voyage em Chine, 2009).








Fragmentos para uma Fotobiografia: acima,
Barthes no Marrocos, em 1969, quando trabalhou
como professor da Faculdade de Letras de Rabat.
Abaixo, com Julia Kristeva durante a viagem
da delegação francesa à China, em 1974












8. Um escritor ao piano

Barthes tocando piano em casa, fotografado em 1975 por Sophie Bassouls. O pesquisador dos signos e dos textos literários e não-verbais praticava música desde a infância, tanto no piano como no canto. Barthes sabia ler partituras como um mestre e durante as décadas de 1930 e 1940 chegou a escrever partituras para piano, voz, flauta e violoncelo. Durante sua trajetória, publicou diversos artigos dedicados à análise musical. Schumann era seu compositor favorito. 


9. Aula no Collège de France

Barthes fotografado na tarde do dia 7 de janeiro de 1977, durante sua aula inaugural para a cátedra de “Semiologia Literária” no Collège de France. A apresentação de Barthes, considerada magistral pelos alunos e pela banca de avaliação, posteriormente foi publicada no livro “Aula” (Leçon, 1978). 


10. A última fotografia

Barthes em sua última fotografia, em 25 de fevereiro de 1980. Barthes enviou os originais para a publicação de “A Câmara Clara” e seguiu a caminho do apartamento de Philippe Serre, na rua des Blancs-Manteaux, no Marais, em Paris, onde participaria de um almoço junto com outros intelectuais e o futuro presidente da França, François Miterrand. Depois do almoço, quando retornava para sua casa, Barthes foi atropelado ao atravessar a rua des Écoles. Foi hospitalizado, mas morreria de complicações decorrentes do acidente, exatamente um mês depois, em 26 de março. Estava com 64 anos.



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Atualidades de Barthes. In: Blog Semióticas, 12 de novembro de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/11/atualidades-de-barthes.html (acessado em .../.../…).


Para acessar o Dossiê Barthes publicado na revista "Em Tese"
da UFMG, clique na imagem abaixo:





Assista o programa de TV produzido pela Rede Minas
em homenagem ao centenário de Roland Barthes:






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Fragmentos para uma Fotobiografia:
no alto, Roland Barthes em 1977, durante
sua aula inaugural da cátedra de “Semiologia
Literária”, ministrada no Collège de France.
Acima, a última foto, em 25 de fevereiro de 1980


1 de maio de 2012

O trabalho de Lewis Hine





A fotografia não sabe mentir,
mas os mentirosos sabem fotografar.

––  Lewis Wickes Hine (1874-1940).  

      

 O Brasil e outros países comemoram no dia 1° de maio o feriado do Dia do Trabalhador, mas poucos se lembram da origem da data e menos ainda de seu sentido. O registro mais antigo de que se tem notícia sobre o assunto é a Revolta de Haymarket, com manifestações de protestos de trabalhadores nas ruas de Chicago, Estados Unidos, no início do mês de maio de 1886. Os protestos, que reivindicavam a redução da jornada de trabalho de 16 para 8 horas, foram reprimidos pela polícia com violência e resultaram em dezenas de mortos e feridos. A repressão teve um resultado contrário ao esperado pelos patrões: a data e os protestos passaram a ser propagados em sua força simbólica.

Aqueles primeiros relatos sobre as lutas sindicais de Chicago correram o mundo e foram lembrados nos anos e décadas seguintes, com muitas passeatas e protestos por melhores condições de trabalho. O que a princípio parecia um sonho impossível começou a se concretizar anos depois, em 1890, quando a repercussão do massacre em Chicago levou o Congresso norte-americano a decretar a redução da jornada de trabalho: de 16 para 8 horas diárias. Algumas décadas se passaram e, em abril de 1919, o Senado da França também ratificou a jornada de trabalho de 8 horas e proclamou o dia 1° de Maio como feriado nacional em homenagem aos trabalhadores assalariados.

O exemplo da redução da jornada foi seguido em muitos países, menos no Brasil. Por aqui, o processo foi muito mais lento. Da mesma forma como detém o triste recorde de ter sido o último país do mundo ocidental a abolir o trabalho escravo, em 1888, no Brasil a redução da jornada de 16 horas também demorou a se concretizar. O dia 1° de maio virou feriado nacional somente em 1925, por um decreto do presidente Artur Bernardes. A questão da jornada e os direitos do trabalhador, entretanto, só foram legalizados 20 anos depois do feriado, com a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo presidente Getúlio Vargas, não por acaso em 1° de maio de 1943.









Fotografias de Lewis Hine: no alto,
Trabalhador na casa de força (1920);
acima, New Jersey: garoto de oito anos
com cavalo no campo (1910), Garotos
à meia-noite na fábrica de vidros (1908)
e Operário erguendo o mastro (1932), da
série que o fotógrafo dedicou à construção
do Empire State Building em Nova York.

Abaixo, uma imagem das séries que Hine
dedicou às levas de imigrantes e seus filhos
que chegavam à América: mãe e seus três
filhos, vindos da Itália, desembarcam no
porto de Nova York em 1905








Se no plano político as lutas e reivindicações de trabalhadores no mundo inteiro geram batalhas permanentes, coube a um fotógrafo o trabalho pioneiro de transformar em arte as denúncias de situações de trabalho aviltantes. Há pouco mais de 100 anos, o sociólogo norte-americano Lewis Wickes Hine (1874-1940) encontrou na fotografia a sua forma de denunciar as injustiças sociais e as mazelas do trabalho infantil.

No começo do século 20, crianças compunham uma boa parcela da mão de obra na indústria, nas ruas e no campo nos Estados Unidos e em vários países, inclusive no Brasil. Diante do que percebeu como situação de abuso e imoralidade, Hine produziu, a partir de 1903, um dos mais impressionantes acervos sobre condições desumanas de trabalho, questões de saúde pública e discriminação de minorias, com mais de 5 mil fotografias em papel e 300 negativos de vidro.












O trabalho de Lewis Hine: a partir 
do alto e abaixo, retratos heroicos sobre
infância perdida com o trabalho no
campo, em New Jersey, em fotografias
das séries realizadas por Hine em 1910.

Abaixo, três fotografias com denúncias de
Lewis Hine contra o trabalho infantil no campo:
1) os irmãos Campbell, de 5, 6, 7 e oito anos,
que trabalhavam no campo em New Jersey,
em 1911, em troca de uma refeição por dia;
2) Callie Campbell, 11 anos, trabalhava
na colheita de algodão durante 12 horas
por dia no condado de Potawotamie, em
Oklahoma, também em 1911; e 3) a colhedora
de frutas Bertha Marshall, de 9 anos, que
trabalhava diariamente em troca de uma
refeição na fazenda Jenkins, em
Baltimore, Maryland, em 1909  



















Hoje aclamado como um dos mais importantes fotógrafos de todos os tempos e com seu legado estudado por pesquisadores de várias áreas do conhecimento acadêmico, Lewis Hine também é reconhecido como um pioneiro na luta pela criação de leis trabalhistas e de reforma social. Contratado em 1908 como fotógrafo e inspetor do Comitê Nacional do Trabalho Infantil dos EUA, Hine acreditava que o semblante de uma criança poderia mostrar muito mais do que qualquer outro tipo de prova sobre a realidade do trabalho infantil.



Exploração e vertigem



Além de seu trabalho investigativo como funcionário do governo, Lewis Hine também realizou séries de documentação fotográfica humanitária na Europa, a serviço da Cruz Vermelha Internacional, durante a Primeira Guerra, registrando imagens que ainda hoje são sempre reproduzidas para ilustrar reportagens e documentários, tais como “Soldier thrown in the air”, com o soldado lançado ao ar em comemoração das tropas aliadas ao fim do conflito. As fotografias de Lewis Hine registraram os momentos de descontração e até poéticos da tropas militares, mas também os horrores da guerra que, em quatro anos de matança e destruição nunca vistas, resultou em incontáveis milhões de mortos. Somente entre as tropas militares, os números oficiais apontam 11 milhões de soldados mortos e 21 milhões com ferimentos graves ou mutilados, com uma média diária de 6 mil soldados mortos por cada dia de conflito.

De volta aos Estados Unidos, Lewis Hine passaria os anos seguintes e toda a década de 1920 engajado em campanhas pelo estabelecimento de leis que regulamentassem a segurança no trabalho e a saúde do trabalhador. Em 1930, ele registraria outra de suas séries que ganharam o mundo: as panorâmicas de altitude sobre os operários na impressionante e vertiginosa etapa de finalização das obras de construção do Empire State Building, que era até então o prédio mais alto do planeta. Em plena época da chamada “grande depressão”, Lewis Hine documentou o que também se tornou, para muitos, um símbolo de esperança e de progresso naqueles tempos difíceis.













O trabalho de Lewis Hine: operários
sem nenhuma segurança, nas alturas,
durante as obras para a construção
do Empire State Building. As cenas
que, ainda hoje provocam vertigem,
foram reunidas por Lewis Hine no livro
Men at Work (Homens trabalhando),
publicado pela primeira vez em 1932.

Também abaixo, o soldado lançado ao
ar na comemoração das tropas aliadas
pelo fim da Primeira Guerra Mundial,
em 1917, época em que Lewis Hine
trabalhou na Europa como
fotógrafo da Cruz Vermelha















Na fronteira entre a denúncia e a exaltação da coragem, as fotografias de Hine sobre os operários no Empire State são sempre lembradas por muitos como tributo à individualidade e à importância do trabalho. Nas palavras de Hine, cada uma dessas imagens são um lembrete de que "as cidades não são construídos por si só. Elas têm atrás de si o sacrifíco e o suor de muitos homens". Os operários e as cenas de vertigem no alto do Empire State foram reunidas em 1932 em “Men at Work”, o único livro que Hine publicou. 

A dedicação à fotografia teve início quando Lewis Hine comprou sua primeira câmera, em 1903. Desde então, seu mergulho no registro de imagens e seu empenho em denunciar a pobreza e a vida miserável dos imigrantes, os abusos da exploração e das condições degradantes de trabalho, o levaram a deixar o cargo de professor na Ethical Culture School e a viajar durante anos por todo o território dos Estados Unidos, documentando com suas fotografias as condições de trabalho em diversas atividades. 


















Trabalho Infantil na América: imagens
comoventes de crianças de 6 a 12 anos
em jornadas e condições abusivas nas
fábricas e minas de carvão foram
registradas por Lewis Hine em 1910
em South Pittston, Pennsylvania





















As fotografias de denúncia de Lewis Hine, que ainda hoje impressionam pela crueldade a que crianças e trabalhadores em geral eram submetidos, provocaram escândalo desde as primeiras publicações em jornais e revistas de Nova York, há mais de 100 anos, e foram o motor para a criação da legislação para o controle e regulamentação do trabalho primeiro nos Estados Unidos e depois em outros países. Nas fotografias de Hine, à exceção das séries de operários no Empire State, são poucos adultos: na maioria são crianças substituindo a tração animal em grandes plantações ou exploradas nas ruas das grandes cidades, em minas de carvão, nas usinas e na indústria têxtil.



Apelo estranho e comovente



No decorrer no último século, as imagens de denúncia produzidas por Hine foram reproduzidas com frequência em reportagens, em panfletos sindicais, em livros de história e nos manuais sobre fotografia, além de lugares mais improváveis, de montagens de arte underground a capas de discos de punk-rock. Cada uma delas mantém seu apelo estranho e comovente, ao mesmo tempo real e abstrato – como destaca Roland Barthes em seu célebre estudo sobre a arte e a técnica da fotografia intitulado “A Câmara Clara”.












O trabalho de Lewis Hine: o fotógrafo
em autorretrato no final da década de 1930
e três garotos registrados por ele em
seus locais de trabalho na cidade de
Brown, West Virginia, em 1909.
Abaixo, as três irmãs Josie (seis anos),
Bertha (seis anos) e Sophie (dez anos),
que trabalhavam como descascadoras de
ostras em 1911 na Maggioni Canning Co.,
em Port Royal, Carolina do Sul, em
troca de uma refeição por dia









Entre a invenção de uma “teoria do olhar” e a análise sobre imagens de Nadar, Kertész, Niépce, Stieglitz, Avedon, Mapplethorpe e William Klein, entre outros grandes fotógrafos citados por Barthes, Hine é quem tem o maior número de fotografias reproduzidas na edição original de “A Câmara Clara”, publicada em 1980. Barthes destaca em Hine um certo “punctum”, o sentido da arte e não apenas a exposição da dor, do sofrimento, da exploração e da miséria: “o punctum de uma foto é esse acaso que nela me punge (mas também me mortifica, me fere)”. 

No breve texto de apresentação a “Men at Work”, Hine chegou a relatar algumas das inúmeras dificuldades e perigos que enfrentou em suas “investigações”. Os donos das fábricas não permitiam que ele fotografasse e não raro contratavam capangas para ameaçá-lo e tentar tomar seus equipamentos. Hine tinha por método esconder a câmera e se apresentar como um inspetor de incêndio. Assim, capturava as fotos mais reveladoras.












Os pequenos jornaleiros chegam às
ruas de madrugada em Washington,
em 1910. Acima, dois flagrantes sobre
o trabalho do pequeno Francis Lance,
de apenas 5 anos de idade, fotografado
por Lewis Hine na cidade de
St. Louis, Missouri, em 1912.

Abaixo, Lewis Hine em ação, em 1913,
registrando a família Sherrica em que os
quatro irmãos (de 11, 10, 7 e 3 anos)
trabalhavam em uma fábrica em Bluffton,
na Carolina do Sul, limpando peixes e
frutos do mar, durante 12 horas por dia;
e a imagem célebre que registra
Anormais em uma instituição,
fotografia de 1924 de Lewis Hine
destacada por Roland Barthes
no livro A Câmara Clara










Em uma das muitas vezes em que foi preso, acusado de invadir uma propriedade particular para fazer suas fotografias de denúncia sobre exploração do trabalho infantil, Hine declarou em uma audiência diante das autoridades policiais e da justiça: “Talvez vocês estejam cansados de tantas fotos que fazem denúncias sobre o trabalho infantil. Preciso dizer que eu também estou, mas quero fazer vocês e o resto do país ficarem tão enjoados destas cenas a ponto de obrigar isso a ter fim. Tenho esperança de que haverá um dia em que o trabalho infantil será apenas um registro esquecido em fotografias do passado.”

A experiência proporcionada por uma das imagens de Lewis Hine, conforme destaca Roland Barthes em “A Câmara Clara”, é exemplar sobre o que o fenômeno da fotografia pode provocar de mais intenso e revelador. Ao observar o registro feito por Lewis Hine, em 1924, de duas crianças anormais em uma instituição de New Jersey, Barthes localiza um conceito que se tornaria célebre em análises sobre fotografia: o “punctum”.







O que vejo é o detalhe descentrado, a imensa gola Danton do garoto, o curativo no dedo da menina. Sou um selvagem, uma criança – ou um maníaco; mando embora todo o saber, toda cultura, abstenho-me de herdar de um outro olhar”, confessa Barthes. É a  subjetividade do leitor que vai perpassar o enquadramento do objeto retratado, pondo-o em movimento, dando-lhe tanto a continuidade como a descontinuidade narrativas.

A reflexão a respeito da trama situacional, que fez a fotografia emergir, se impõe através da atenção do receptor que observa e pode, por fim, enveredar por um percurso que articula razão e emoção. Cabe ao observador encadear o que o fotógrafo quis que ele visse e fundir a maior parte dos elementos que fazem convergir fotografia e memória, essa “estocagem” cultural que vem alinhavar cada uma das experiências vividas.



Horror cotidiano



Com a autenticidade da grande arte, o trabalho de Lewis Hine emociona, como destaca Barthes em "A Câmara Clara". E emociona exatamente porque não estava à procura de piedade ou de sentimentalismos, nem mesmo de caridade. Como nos épicos monumentais da literatura universal ou nos afrescos góticos das grandes catedrais da Idade Média, Hine produziu registros sobre cenas cotidianas que reservam algo de mitológico exatamente porque conseguem recriar o que na época era muito comum e hoje provocam estranhamento, provocando no observador emoções contraditórias e levando ao entendimento sobre alguns dos horrores que se repetiam nos primórdios da sociedade industrial.







O trabalho de Lewis Hine: acima,
garoto de 8 anos de idade durante a
madrugada, no trabalho em uma
estação ferroviária em Boston,
Massachusetts (EUA), em 1909.

Abaixo, crianças operam máquinas
na fábrica de tecidos de algodão
Whitnel, em North Carolina, 1908.
Lewis Hine registrou que, ao perguntar
para a garota (última foto) quantos anos
tinha e qual era seu nome, ela fez uma
longa pausa e finalmente respondeu:
"Não me lembro..."









Numa época em que a escravidão humana ainda era uma experiência muito recente, quando era tão comum haver tanta injustiça social e com a maioria das pessoas estando tão acostumadas com esses problemas, Lewis Hine ousou se manifestar em defesa dos mais explorados e das vítimas mais contumazes da ordem vigente. Quando o jornalismo e os repórteres investigativos ainda não tinham saído a campo e quando quase todos acreditavam que o trabalho mais aviltante de crianças e de adultos era algo inevitável, e até mesmo os próprios operários pareciam estar conformados e resignados em tal situação, o fotógrafo enfrentou a tudo e a todos na intenção de fazer suas denúncias contra o que o senso comum ainda considerava natural ou inevitável.
 
Por ironia do destino, o reconhecimento da importância do trabalho de Lewis Hine tanto na imprensa como por parte de críticos e historiadores da arte foi muito tardio e não garantiram a ele nem fama nem fortuna. Em seus últimos anos de vida, talvez por força da resistência dos interesses corporativos que ele enfrentou e contrariou durante décadas, Lewis Hine não conseguiu mais nem emprego e nem espaço nos jornais e revistas para publicar suas fotografias.

Sem dinheiro e com poucos amigos, acabou hipotecando e perdendo a casa em que morava e tornou-se vítima da pobreza que sempre fez questão de retratar. Morreria esquecido e na miséria, em 1940. Entretanto, sua herança de realismo e de percepção pioneira sobre o papel fundamental da fotografia como documento, a força das situações de trabalho aviltantes e dos rostos comoventes das crianças e dos adultos que registrou, assim como suas denúncias contundentes contra as formas criminosas de injustiça social, continuam como um alerta a questionar, a impressionar e a assombrar a experiência humana.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O trabalho de Lewis Hine. In: _____. Blog Semióticas, 1° de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/o-trabalho-de-lewis-hine.html (acessado em .../.../...).



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